segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Dez — Vuelo.

Eu estava sentada ao lado de Junior na varanda e o céu acima de nós dois era uma imensidão negra cravejada de pontos brilhantes. Durante meses eu vinha tentando bloquear as memórias mais específicas, tentando me concentrar apenas no medo que havia deixado para trás. Não queria me lembrar de Lorenzo, não queria pensar nele. Queria apagá-lo totalmente de minha vida, fingir que ele nunca existira. Mas ele sempre estaria lá.
Junior ficou em silêncio durante todo o relato, com sua cadeira formando um ângulo com a minha. Contei a história em meio às lágrimas, embora eu nem soubesse que estava chorando. Eu lhe contei tudo sem qualquer emoção, quase em um estado de transe, como se os eventos tivessem acontecido com outra pessoa.
À medida que falava, não conseguia olhar nos olhos de Junior. Ele havia ouvido versões da mesma história antes, mas desta vez era diferente. Eu não era simplesmente uma vítima, era sua amiga, a garota por quem ele havia se apaixonado. Junior afastou uma mecha do cabelo que caía por cima do meu rosto.
Quando me tocou, eu me movi em um reflexo involuntário antes de relaxar. Suspirei, cansada. Cansada de falar. Cansada do passado.
NeymarJr: Você fez a coisa certa ao sair de onde estava — o tom de sua voz era suave e compreensivo. Eu demorei um momento para responder. 

Ariela: Eu sei.
NeymarJr: Você não tem culpa de nada. — olhei em direção às luzes da cidade.
Ariela: Tenho, sim. Eu o escolhi, se lembra? Eu me casei com ele. Deixei isso acontecer uma vez e outra vez depois disso. Ainda cozinhava para ele e limpava a casa. Dormia com ele sempre que ele queria e fazia tudo o que ele queria. Fiz com que ele pensasse que eu adorava aquela vida.
NeymarJr: Você fez o que tinha que fazer para sobreviver — disse com a voz firme. Eu voltei a ficar em silêncio.
Ariela: Nunca pensei que uma coisa dessas pudesse acontecer. Meu pai era um alcoólatra, mas não era violento. Eu era tão... fraca. Não sei porque deixei isso acontecer.
NeymarJr: Porque houve um tempo em que você o amava. Porque você acreditou no seu marido quando ele prometeu que aquilo não voltaria a acontecer. Porque ele ficou cada vez mais violento e controlador, de uma maneira muito lenta, te fazendo pensar que mudaria, até que você finalmente percebeu que isso nunca aconteceria. – falou numa voz suave.
Com aquelas palavras, eu respirei fundo e baixei a cabeça, com meus ombros se movendo para cima e para baixo. Eu estava frágil e vulnerável. Havia chegado ao meu limite. Demorou alguns minutos até que eu finalmente conseguisse parar de chorar. Meus olhos estavam vermelhos e inchados.
Ariela: Desculpe-me por ter lhe contado tudo isso. Eu não deveria — disse com a voz ainda embargada.
NeymarJr: Fico feliz por ter contado.
Ariela: A única razão para eu ter feito isso é porque você já sabia.
NeymarJr: Eu entendo.
Ariela: Mas você não precisava saber dos detalhes sobre as coisas que tive que fazer.
NeymarJr: Não se preocupe com isso.
Ariela: Eu o odeio. Mas eu odeio a mim mesma também. Tentei lhe dizer que é melhor eu ficar sozinha. Não sou a pessoa que você pensa que sou. Não sou a mulher que você acha que conhece. — eu estava a ponto de começar a chorar de novo, até que ele finalmente se levantou. Puxando-me a mão, ele indicou que queria que eu me levantasse. Eu o fiz, mas não conseguia olhá-lo no rosto. Junior manteve a voz num tom suave.
NeymarJr: Ouça o que tenho a dizer — sussurrou. Ele colocou um dedo sob o meu queixo para levantá-lo. Eu resisti, a princípio, até que finalmente cedi e o olhei nos olhos. Ele prosseguiu. — Não há nada que você possa me dizer que vá mudar o que sinto por você. Nada. Porque você não é assim. Você nunca foi assim. Você é a mulher que eu conheço. É a mulher que eu amo. — eu o estudei, querendo acreditar nele, sabendo que, de algum modo, ele estava dizendo a verdade. E senti algo ceder dentro de mim. Mesmo assim...
Ariela: Mas...
NeymarJr: Nada de “mas”, porque nada disso é importante. Você se enxerga como alguém que não conseguiu fugir do que o destino te reservou. Eu vejo uma mulher corajosa que escapou. Você se enxerga como alguém que deveria se sentir envergonhada ou culpada por ter deixado que aquilo acontecesse. Eu vejo uma mulher bonita e gentil, que deveria sentir orgulho por ter impedido que aquilo voltasse a acontecer. Nem todas as mulheres têm a força para fazer o que você fez. É isso o que eu vejo agora e é isso que eu sempre vi quando olhava para você. — eu sorri.
Ariela: Acho que você precisa usar óculos.
NeymarJr: Eu não, — ele se inclinou em direção a mim e cautelosamente, certificando-se de que tudo estava bem antes de beijar-me. Foi um beijo curto e suave. Carinhoso. — Apenas me sinto triste por você ter enfrentado tudo isso.
Ariela: Eu ainda estou enfrentando.
NeymarJr: Você acha que ele está procurando por você?
Ariela: Eu sei que ele está procurando por mim. E ele nunca vai parar — disse antes de fazer uma pausa. — Tem algo errado com ele. Ele é... insano.
NeymarJr: Eu sei que não deveria fazer essa pergunta, mas você já pensou em avisar a polícia? – eu baixei os ombros.
Ariela: Sim. Eu liguei uma vez.
NeymarJr: E eles não fizeram nada a respeito?
Ariela: Eles vieram até minha casa e conversaram comigo. E me convenceram de que seria melhor não prestar queixa.
NeymarJr: Isso não faz sentido.
Ariela: Fazia bastante sentido para mim — dei de ombros — Lorenzo me avisou que não seria bom chamar a polícia.
NeymarJr:  Como ele sabia? — eu suspirei, pensando que era melhor contar tudo de uma vez.
Ariela: Porque ele é a polícia — disse, finalmente. Eu o olhei nos olhos. — Ele é um investigador no departamento de polícia de Bariloche. E ele não me chamava de Ariela. — acho que meus olhos demonstravam meu desespero — Ele me chamava de Olívia.

***
Junior ficou comigo até depois da meia-noite, escutando-me enquanto eu contava a história de minha vida. Quando eu estava cansada demais para continuar a falar, ele colocou seus braços ao redor de mim e se despediu com um beijo de boa noite.
***

NeymarJr. On
Eu e Ariela passamos uma boa parte das duas semanas seguintes juntos tanto tempo quanto podíamos. Considerando as minhas horas de trabalho com gravações, fotos, e os turnos de Ariela no restaurante, aquilo se resumia a algumas poucas horas por dia, mas eu ansiava pelas visitas que eu fazia à seu apartamento com uma expectativa que não sentia já havia algum tempo. Às vezes, Davi me acompanhava até lá.
Ariela raramente ia à minha casa e, quando o fazia, era apenas para visitas curtas. Em minha mente, eu queria acreditar que aquilo acontecia por causa da minha família, ou porque ela não queria apressar as coisas. Entretanto, uma parte de mim percebeu que aquilo acontecia por causa de Bruna, que estava sempre com minha irmã. Embora eu soubesse que amava Ariela — e a cada dia que passava estava mais seguro sobre aquilo — não tinha certeza de que realmente estivesse preparado. Ariela parecia entender minha relutância e parecia não se importar. Até mesmo porque era mais confortável para nós dois ficarmos a sós no apartamento dela.
Mesmo assim, ainda não havíamos feito amor. Embora eu sempre me apanhasse imaginando o quanto aquilo seria maravilhoso, especialmente nos momentos que antecediam o sono, eu sabia que Ari não estava preparada para isso. Nós sabíamos que aquilo significaria uma mudança no nosso relacionamento, um tipo de esperança perene. Por enquanto, era o bastante poder beijá-la, poder sentir os braços dela ao meu redor. Eu adorava o aroma do xampu de jasmim nos cabelos dela e o jeito que nossas mãos se encaixavam perfeitamente; a maneira pela qual cada toque era carregado de uma expectativa deliciosa, como se estivéssemos nos guardando um para o outro.
Desde a noite em que jantamos na casa de Ari pela primeira vez, ela não havia mais falado sobre seu passado e eu também não tocara no assunto. Eu sabia que ela ainda estava se esforçando para assimilar tudo aquilo em sua mente: o quanto ela já me contara e o quanto ainda havia por contar; saber se podia confiar em mim ou não; não conhecer a real importância sobre ela ainda ser casada; e, acima de tudo, o que aconteceria se Lorenzo a descobrisse aqui. Quando eu percebia que ela estava triste por pensar naquelas questões, eu a lembrava, gentilmente, de que, independentemente do que acontecesse, seu segredo estaria seguro comigo. Nunca contaria nada a ninguém.
Observando-a, eu às vezes me sentia tomado por uma raiva quase incontrolável em relação a Lorenzo. Aqueles instintos masculinos de agredir e torturar uma mulher eram tão estranhos para mim quanto a capacidade de respirar debaixo d’água ou voar. Mais do que qualquer coisa, eu queria vingança. Queria justiça. Queria que Lorenzo passasse pela mesma angústia e pelo mesmo terror que tinha provocado em Ari, as infindáveis sessões de castigos físicos cruéis.
Eu sabia que havia momentos em que a violência era necessária para salvar vidas. Em minha mente, a decisão de proteger uma mulher inocente como Ari de um psicopata como Lorenzo era tão clara como a diferença entre o preto e o branco — uma escolha simples.

NeymarJr Off

Eu gostava demais de Junior. Mais do que poderia ser seguro. Eu sabia que estava trilhando um caminho perigoso. Contar a ele sobre meu passado pareceu-me a coisa certa a fazer e abrir meus segredos para ele, de alguma forma, me libertara daquele fardo esmagador. Mas, na manhã seguinte àquele primeiro jantar, fiquei paralisada pela ansiedade em relação ao que tinha feito. Junior era um garoto público, afinal de contas; aquilo provavelmente significava que ele podia dar um, ou dois telefonemas independente do que eu lhe dissesse. Ele conversaria com alguém, e essa pessoa conversaria com outra, até que, após algum tempo, Lorenzo ficaria sabendo de tudo. Eu não lhe dissera que Lorenzo tinha uma capacidade quase sobrenatural de ligar as informações aparentemente desconexas; eu não havia mencionado que, quando um suspeito se tornava um fugitivo, Lorenzo quase sempre sabia onde encontrá-lo. O simples fato de pensar no que havia feito me embrulhava o estômago.
Entretanto, gradualmente, durante as duas semanas seguintes, eu senti meus medos desaparecerem. Em vez de fazer mais perguntas quando estávamos sozinhos, Junior agia como se minhas revelações não estivessem diretamente ligadas às nossas vidas em Santos. Os dias se passavam com uma espontaneidade tranquila, sem o incômodo causado pelas sombras de minha vida anterior. Eu não conseguia evitar aquele sentimento — eu confiava em Junior. Quando nos beijávamos, o que acontecia com uma frequência surpreendente, havia momentos em que eu sentia meus joelhos tremerem, e estava ficando cada vez mais difícil impedir o desejo de segurar na mão dele e arrastá-lo para o quarto.
No sábado, duas semanas depois do primeiro beijo, nós estávamos na varanda do meu quarto. Junior estava com os braços ao redor do meu corpo e seus lábios pressionados contra os meus. Mais tarde, levaríamos Davi — que estava dormindo na minha cama — para casa da mãe mas, durante as próximas horas, estaríamos a sós.
Quando finalmente conseguimos nos afastar, eu suspirei.
Ariela: Você realmente precisa parar de fazer isso.
NeymarJr: Parar de fazer o quê?
Ariela: Você sabe exatamente o que está fazendo.
NeymarJr: Não consigo evitar. — “Sei como é essa a sensação”, pensei.
Ariela: Você sabe do que eu gosto em você?
NeymarJr: Do meu corpo?
Ariela: Sim. Gosto disso também — disse rindo. — Mas há outra coisa. Você faz com que eu me sinta especial.
NeymarJr: Você é especial.
Ariela: Estou falando sério. Mas isso me faz pensar por que você nunca encontrou outra pessoa depois que rompeu o namoro com Bruna.
NeymarJr: Eu não estava à procura. Mas, mesmo que houvesse outra pessoa, eu a teria dispensado para poder ficar com você. — eu ri.
Ariela: Isso é muito indelicado — disse espetando-lhe as costelas com o dedo.
NeymarJr: Mas é verdade. Acredite ou não eu sou seletivo. Quando quero algo sério.
Ariela: Sim, eu imagino. Você só sai com mulheres que tenham traumas emocionais.
NeymarJr: Você não é do tipo traumatizada. Você é uma mulher corajosa. É uma sobrevivente. É algo bem sensual.
Ariela: Acho que você está tentando me elogiar, esperando que eu rasgue suas roupas aqui mesmo.
NeymarJr: Está funcionando?
Ariela: Está chegando perto — admiti, e o som do riso de Junior me lembrou novamente do quanto eu o amava.
NeymarJr: Estou feliz por você ter vindo morar em Santos. Poderia ser em Barcelona. Mas aqui já está de bom tamanho.
Ariela: Ah, sim... O que acontece quando você voltar para Barcelona?
NeymarJr: Não sei. — pensou um pouco — Vou dar um celular para você.
Ariela: Não precisa.
NeymarJr: Não estou perguntando se precisa. Só avisando. — riu.
Ariela: Olha, eu não preciso que você me dê um celular.
NeymarJr: Mas eu vou dar. Nada que você disser mudará isso.
Ariela: Você vive me dando coisas e isso tem que parar. Eu não quero nada de você. Não preciso de um guarda-chuva, nem de sapatos, nem de vinho. — esses eram os "presentes" que havia recebido durante a semana — E não preciso de um celular.
NeymarJr: Então dê o celular para alguém. Eu já o comprei — disse dando de ombros. — E também não quero ele. — Eu fiquei em silêncio e Junior me observou. Balancei a cabeça e me virei para sair dali. Antes que eu pudesse dar um passo, ele limpou a garganta. — Antes de ir, você poderia fazer a gentileza de ouvir o que tenho a dizer? — Virei o pescoço e olhei para Junior por cima do ombro.
Ariela: Não me importa.
NeymarJr: Mesmo que não se importe. — ele apontou para as cadeiras de balanço, hesitei por um momento antes de me sentar ao lado dele. — É só um celular. Só pra gente conversar e se ver quando eu não estiver mais aqui. Você não deve ser tão orgulhosa, Ariela. É só um celular.
Ariela: Então eu compro um.
NeymarJr: Compre se quiser. Mas você já tem um e, fim — suspirei, cedendo à discussão.
Ariela: Está bem. Mas chega de presentes, tá? — ele fingiu não escutar. — Estou falando sério — ele riu e se aproximou, colando nossos lábios. Quando nos separamos, eu suspirei. Por um instante, eu desapareci dentro de mim mesma.
NeymarJr: O que foi? — estudou-me o rosto, repentinamente em estado de alerta. Eu balancei a cabeça.
Ariela: Foi por pouco... — suspirei colocando os braços ao redor do corpo ao me lembrar da ocasião. — Eu quase não consegui chegar até aqui em Santos.


Flashback On
Era a manhã de um domingo, o dia seguinte à minha ida ao salão de beleza. Eu olhei no vaso sanitário para ver se havia algum sinal de sangue, certa de que havia visto alguma coisa depois de urinar. Meu rim ainda latejava e a dor se irradiava dos ombros até as canelas. A dor me manteve acordada por várias horas enquanto Lorenzo roncava ao meu lado, mas, felizmente, não era tão sério quanto podia ter sido. Depois de fechar a porta do quarto por trás de mim, manquei até a cozinha, lembrando a mim mesma de que, dentro de um ou dois dias, tudo aquilo estaria terminado. Mas eu precisava ter cuidado para não levantar as suspeitas de Lorenzo, tinha que fazer as coisas exatamente da maneira certa. Se ignorasse a surra que levara na noite anterior, ele ficaria desconfiado. Se eu me afastasse demais, ele também ficaria desconfiado. Depois de quatro anos naquele inferno, eu havia aprendido as regras do jogo.
Lorenzo teria que ir para o trabalho ao meio-dia, independentemente de ser domingo, e eu sabia que ele não tardaria a acordar. A casa estava fria e eu vesti uma blusa grossa de lã sobre meu pijama. Pela manhã, Lorenzo geralmente não se importava com aquilo, porque a ressaca o deixava letárgico demais para tomar qualquer atitude. Eu comecei a fazer o café da manhã e coloquei o leite e o açúcar na mesa, com a manteiga e a geleia. Coloquei os talheres para ele na mesa e deixei um copo de água gelada ao lado do garfo. Depois, coloquei duas fatias de pão de forma na torradeira, embora ainda não tivesse ligado o aparelho. Deixei três ovos sobre o balcão, onde poderia alcançá-los rapidamente. Em seguida, coloquei seis fatias de bacon na frigideira. Elas já estavam crepitando e chiando em meio à fritura quando Lorenzo chegou à cozinha. Ele se sentou à mesa e bebeu água enquanto eu lhe trazia sua xícara de café.
Lorenzo: Eu dormi feito uma pedra na noite passada. A que horas fomos para a cama?
Ariela: Por volta das 10, eu acho — coloquei o café ao lado do seu copo vazio. — Não estava tarde. Você tem trabalhado demais e eu sei que está cansado. — os olhos de Lorenzo estavam vermelhos.
Lorenzo: Desculpe pelo que fiz ontem à noite. Não queria ter feito aquilo. Estou trabalhando sob uma pressão muito forte ultimamente. Desde que James sofreu o ataque cardíaco estou tendo trabalhos em dobro, e o caso Preston começa esta semana.
Ariela: Está tudo bem — ainda sentia o cheiro do álcool no hálito de Lorenzo. — Seu café da manhã vai ficar pronto logo.
No fogão, eu virei as fatias de bacon com um garfo e a gordura quente respingou no meu braço, fazendo com que eu esquecesse temporariamente da dor que sentia nas costas. Quando o bacon estava crocante, eu coloquei quatro fatias no prato de Lorenzo e duas no meu próprio. Eu escorri a gordura e a guardei em uma lata de sopa, enxuguei a frigideira com uma toalha de papel e voltei a untá-la com óleo. Tinha que trabalhar rápido para que o bacon não esfriasse. Liguei a torradeira e quebrei os ovos. Lorenzo gostava que seus ovos estivessem fritos no ponto médio, com a gema intacta, e eu havia aprendido a fazer aquilo com perfeição. A frigideira ainda estava quente e os ovos não demoraram a estar prontos. Eu os virei na frigideira uma vez antes de colocar dois no prato dele e um no prato onde eu iria comer.
Eu me sentei à frente de Lorenzo, pois ele gostava de tomar o café da manhã acompanhado. Ele passou manteiga em sua torrada e acrescentou a geleia de uva antes de usar seu garfo para partir os ovos. A gema escorreu pelo prato como sangue amarelado e ele esfregou a torrada nos ovos antes de comê-los.
Lorenzo: O que você vai fazer hoje? — Ele usou seu garfo para cortar mais um pedaço do ovo. Mastigando.
Ariela: Estava pensando em lavar as janelas e colocar as roupas na máquina de lavar.
Lorenzo: Acho que os lençóis também precisam de uma boa lavagem, não é? Depois de termos nos divertido neles a noite passada — agitou as sobrancelhas. Seu cabelo estava desalinhado, com fios apontando para todas as direções, e ele tinha um pedaço de ovo grudado no canto da boca. Eu tentei não demonstrar o asco que sentia. Em vez disso, eu mudei o rumo da conversa.
Ariela: Você acha que vai conseguir prender os culpados no caso Preston? — Ele se inclinou para trás e agitou os ombros em um movimento circular antes de voltar a se curvar sobre seu prato.
Lorenzo: Vai depender da promotoria. Orlando é bom nisso, mas nunca se sabe. Preston tem um advogado malandro e ele vai tentar distorcer todos os fatos a seu favor.
Ariela: Tenho certeza de que tudo vai dar certo. Você é mais inteligente do que ele.
Lorenzo: Veremos. Eu detesto o fato de que o julgamento vai acontecer em Buenos Aires. Orlando quer me preparar para o testemunho na noite de terça-feira, depois que o tribunal encerrar as atividades do dia.
Eu já sabia de tudo aquilo e acenei afirmativamente com a cabeça. O caso Preston teve uma ampla repercussão na mídia e o julgamento começaria na segunda-feira, em Buenos Aires, não em Bariloche. Lorraine Preston havia supostamente contratado um homem para matar seu marido. Além de Juan Preston ser um bilionário que gerenciava fundos de investimentos, sua esposa também era uma celebridade social, envolvida no apoio a instituições filantrópicas que iam desde museus de arte até a organização de orquestras sinfônicas em escolas de bairros carentes. A exposição do caso antes do julgamento havia sido impressionante. Todos os dias, sem exceção, um ou dois artigos eram publicados na primeira página dos jornais e longas reportagens eram exibidas nos noticiários da TV. Quantias imensas de dinheiro, práticas sexuais estranhas, drogas, traição, infidelidade, assassinatos e um filho ilegítimo. Por causa de toda a comoção ao redor do caso, o julgamento havia sido transferido para Buenos Aires. Lorenzo foi um dentre vários policiais destacados para a investigação e todos deveriam dar seu testemunho na quarta-feira. Como todas as pessoas, eu estava acompanhando as notícias, mas, ocasionalmente, eu perguntava alguns detalhes a Lorenzo sobre o desenrolar do caso.
Ariela: Sabe do que você vai precisar quando sair do tribunal? De um passeio à noite para relaxar. Nós poderíamos sair para jantar. Você estará de folga na sexta-feira, não é?
Lorenzo: Nós fizemos isso no ano novo — resmungou, esfregando novamente uma fatia de torrada na gema que estava espalhada em seu prato. Havia restos de geleia em seus dedos.
Ariela: Se você não quiser sair, eu posso preparar algo especial aqui em casa mesmo. Qualquer coisa que você queira. Podemos tomar um vinho e talvez acender a lareira, e eu posso vestir algo bem sensual para você. Podemos fazer algo bem romântico. — Ele levantou os olhos do seu prato enquanto eu falava. — A questão é a seguinte: estou aberta a tudo o que você quiser — disse com uma voz doce. — Você precisa de uma folga. Não gosto quando você trabalha tanto assim. É como se eles esperassem que você solucionasse todos os casos que existem na cidade. — Ele tamborilou com seu garfo no prato, estudando-me.
Lorenzo: Por que você está agindo assim, toda meiga e carinhosa? O que está acontecendo? — Dizendo a mim mesma para continuar com a encenação, eu me levantei da mesa.
Ariela: Ah, quer saber? Esqueça. — Eu peguei meu prato e o garfo bateu contra ele, caindo sobre a mesa e depois no chão. — Estava tentando demonstrar meu apoio porque você vai ter que sair da cidade, mas, se você não gostou das minhas ideias, está tudo bem. Decida o que você quer fazer e depois me fale quando tiver tempo. — Eu andei rapidamente até a pia, pisando no chão com força, e abri a torneira com força. Sabia que o havia surpreendido e podia senti-lo vacilando entre a raiva e a confusão. Esfreguei as mãos sob o jato d’água e depois as levei ao rosto. Em seguida, inspirei o ar em golfadas rápidas, escondendo meu rosto e fazendo um som estrangulado. E levantei meus ombros com um pouco de esforço.
Lorenzo: Você está chorando? — Eu o ouvi arrastar a cadeira para trás para se levantar. — Por que diabos você está chorando? — Eu falei com a voz propositalmente embargada, esforçando-me ao máximo para fazer pronunciá-las entre meus soluços.
Ariela: Eu não sei mais o que fazer. Não sei o que você quer. Eu sei o quanto este caso é grande e importante e toda a pressão que você está sentindo... — Estrangulei as últimas palavras, sentindo que ele se aproximava. Quando senti que ele me tocava, eu tremi.
Lorenzo: Ei, está tudo bem — disse a contragosto. — Não precisa chorar. — Eu me virei em direção a ele com os olhos fechados, encostando o rosto contra o peito de Lorenzo.
Ariela: Eu só quero fazer você feliz — disse com a voz trêmula, antes de enxugar o rosto úmido na camisa dele.
Lorenzo: Vamos pensar em alguma coisa, certo? Teremos um ótimo fim de semana, eu lhe prometo. Para apagar o que aconteceu ontem à noite. — Eu coloquei meus braços ao redor dele, abraçando-o e soluçando. Tomei fôlego mais uma vez, inalando profundamente.
Ariela: Lamento muito por tudo isso. Sei que você não precisava ouvir isso logo hoje. Esse ataque de nervos que eu tive por causa de algo que não tem a menor importância. Você já tem muito com o que se preocupar.
Lorenzo: Vou conseguir dar conta de tudo — Inclinou a cabeça e eu me ergui para beijá-lo, ainda com os olhos fechados. Quando me afastei, eu enxuguei o rosto com os dedos e o abracei novamente. Quando ele me puxou para si, senti que Lorenzo estava ficando excitado. Eu sabia que minha vulnerabilidade o excitava. — Ainda temos algum tempo antes que eu tenha que sair para o trabalho.
Ariela: Preciso limpar a cozinha antes.
Lorenzo: Você pode fazer isso depois.

Alguns minutos depois, com Lorenzo se movimentando em cima de mim, fiz os sons que ele queria enquanto olhava pela janela do quarto e pensava em outras coisas.
Eu havia aprendido a odiar o inverno, com aquele frio insuportável e um jardim que ficava coberto por uma grossa camada de neve, porque não podia sair de casa. Lorenzo não gostava de deixar-me andar pelo bairro, mas deixava que eu cuidasse de meus canteiros de flores no quintal, pois havia uma cerca ao redor do terreno que me dava privacidade. Na primavera, eu sempre plantava flores em vasos e legumes em um pequeno canteiro ao lado da garagem, onde o sol brilhava com força, longe da sombra das árvores. No outono, vestia um suéter e lia livros que pegava emprestado na biblioteca enquanto as folhas secas e quebradiças cobriam o quintal.
Entretanto, o inverno fazia com que minha vida se transformasse em uma prisão — fria, cinzenta e triste. Um tormento. Eu passava vários dias sem colocar os pés para fora de casa, porque nunca sabia quando Lorenzo apareceria de surpresa. Sabia o sobrenome de um único casal de vizinhos, os Chávez, que viviam do outro lado da rua. Em meu primeiro ano de casamento, Lorenzo raramente me agredira e, algumas vezes, eu saíra para fazer caminhadas sem que ele me acompanhasse. Os Chávez, um casal mais velho, gostavam de cuidar do jardim e, no primeiro ano em que eu morara ali, eu frequentemente parava para conversar com eles. Lorenzo tentou gradualmente acabar com aquelas visitas amigáveis. Agora, só visitava os Chávez quando sabia que Lorenzo estava ocupado com o trabalho e quando sabia que não poderia me telefonar. Eu me certificava de que nenhum outro vizinho estava me observando antes de atravessar a rua correndo para bater na porta deles. Sentia-me como uma espiã quando os visitava. Eles me mostravam várias fotos de suas filhas, tiradas em diferentes épocas da vida. Uma havia morrido e a outra havia se mudado para longe, e eu achava que eles eram tão solitários quanto eu. No verão, eu preparava tortas de mirtilos para os Chávez e depois passava o resto da tarde limpando a farinha espalhada pela cozinha para que Lorenzo não desconfiasse.
Depois que Lorenzo saiu para o trabalho, eu limpei as janelas e coloquei lençóis limpos na cama. Passei o aspirador de pó e limpei a cozinha. Enquanto trabalhava, aproveitei para experimentar disfarçar a voz, praticando para falar com um tom mais grave, de modo que pudesse soar como se fosse a voz de um homem. Tentei não pensar no telefone celular que havia deixado para carregar durante a noite e escondido debaixo da pia. Mesmo sabendo que poderia nunca mais ter uma chance tão boa, ainda estava aterrorizada, pois havia muitas coisas que podiam dar errado.
Eu preparei o café da manhã de Lorenzo na manhã de segunda-feira como sempre fizera. Quatro fatias de bacon, ovos fritos no ponto médio e duas fatias de torrada. Ele estava mal-humorado e distraído e leu o jornal sem conversar muito. Antes de sair de casa, vestiu um sobretudo por cima do paletó e eu lhe disse que tomaria um banho.
Lorenzo: Deve ser ótimo acordar todos os dias sabendo que você pode fazer tudo o que quiser, na hora que quiser.
Ariela: O que vai querer para o jantar? — perguntei, fingindo não ter ouvido o que ele disse.
Lorenzo: Lasanha e pão de alho. E uma salada para acompanhar.
Quando Lorenzo saiu, eu fiquei em frente à janela, observando o carro dele se afastar até chegar à esquina. Assim que ele virou, fui até o telefone, sentindo-me até mesmo um pouco tonta ao pensar no que iria acontecer a seguir.
Quando liguei para a companhia telefônica, ela foi transferida para o departamento de atendimento ao cliente. Cinco, seis minutos se passaram. Lorenzo demoraria vinte minutos para chegar ao trabalho e, sem dúvida, ligaria para casa assim que chegasse. Eu ainda tinha tempo. Finalmente, um atendente começou a falar comigo e me perguntou meus dados. Nome, endereço e o nome de solteira da mãe de Lorenzo. A conta do telefone estava em nome de Lorenzo e eu recitei as informações na voz grave que havia praticado anteriormente. Aquela voz não era parecida com a de Lorenzo, talvez nem mesmo soasse masculina, mas o atendente estava com pressa e não percebeu.
Ariela: Eu gostaria de contratar um serviço de transferência de chamadas nesta linha telefônica. Seria possível?
Atendente: Existe uma taxa extra para a contratação do serviço, mas o serviço inclui chamadas em espera e correio de voz. Custa apenas...
Ariela: Está ótimo — disse interrompendo o atendente. — Mas seria possível ativar o serviço hoje?
Atendente: Sim.
Eu o ouvi digitar algo no computador. Demorou um bom tempo até que ele voltasse a falar. Ele me disse que a taxa extra apareceria na próxima fatura, que seria enviada na semana seguinte, mas que o valor mensal total seria cobrado, embora eu estivesse contratando o serviço hoje. Lhe disse que não haveria problemas. Ele pediu mais algumas informações e disse que eu poderia começar a usar o serviço imediatamente. Toda a transação havia levado dezoito minutos para ser concluída.
Lorenzo me telefonou da delegacia três minutos depois.
Logo depois do telefonema, eu liguei para o Super Shuttle, um serviço de vans especializado em levar pessoas para o aeroporto e para a rodoviária. Fiz uma reserva para o dia seguinte. Depois, com o telefone celular nas mãos, finalmente o ativei. Liguei para um cinema da cidade que repetia uma mensagem gravada com a programação dos filmes, para ter certeza de que o aparelho estava funcionando. A seguir, ativei o serviço de transferência de chamadas no telefone fixo, programando-o para que quaisquer chamadas fossem transferidas para o número do cinema. Para testar o esquema, usei o celular para ligar para o telefone fixo. Meu coração estava aos pulos quando o aparelho tocou. No segundo toque, a chamada foi transferida e ouvi a gravação com a programação do cinema. Senti algo se libertar dentro do peito e minhas mãos estavam tremendo enquanto desligava o aparelho celular e o recolocava na caixa de esponjas para a pia. Eu desprogramei o serviço de transferência de chamadas e o telefone fixo voltou a funcionar como antes.
Quarenta minutos depois, Lorenzo voltou a ligar.
Passei o restante da tarde em um estado de torpor, trabalhando sem parar para que minha cabeça não tivesse tempo de se preocupar.
Quando Lorenzo chegou em casa, o jantar estava pronto. Ele comeu a lasanha e falou sobre como tinha sido seu dia. Quando ele pediu para repetir o prato, eu me levantei da mesa e lhe trouxe uma segunda porção. Depois do jantar, ele bebeu vodca enquanto assistia a reprises de Seinfeld e O rei do bairro. Depois, assistiu ao jogo de basquete entre o Boston Celtics e o Minesotta Timberwolves e eu me sentei ao seu lado. Ele adormeceu em frente à televisão e caminhei até o quarto. Me deitei na cama, olhando para o teto, até que Lorenzo acordou e veio cambaleando para o quarto, desabando sobre o colchão. Ele adormeceu imediatamente, com um braço por cima de mim, e o barulho dos seus roncos soava como um aviso.


Como de costume, preparei o café da manhã de Lorenzo na manhã de terça-feira. Ele guardou suas roupas e artigos de higiene pessoal na mala e estava pronto para ir para Buenos Aires. Depois, levou suas coisas para o carro e voltou para a porta da frente, onde eu estava. E me beijou.
Lorenzo: Estarei de volta amanhã à noite.
Ariela: Vou sentir saudades — disse encostando a cabeça em seu ombro e colocando os braços ao redor do pescoço dele.
Lorenzo: Acho que devo chegar por volta das 8.
Ariela: Vou fazer algo que eu possa requentar quando você chegar em casa. Que tal milanesas?
Lorenzo: Acho que vou comer antes de voltar para casa.
Ariela: Tem certeza? Você vai mesmo querer comer em alguma lanchonete? Faz muito mal para você.
Lorenzo: Veremos.
Ariela: Eu vou preparar milanesas mesmo assim. Caso você mude de ideia. — Ele me beijou enquanto eu o abraçava.
Lorenzo: Eu lhe telefono mais tarde — disse deslizando as mãos pelas minhas costas. Acariciando-me.
Ariela: Eu sei.

No banheiro, me despi e coloquei minhas roupas sobre o vaso sanitário e depois enrolei o tapete. Eu havia forrado a pia com um saco de lixo e, nua, me olhei no espelho. Deslizei os dedos pelos hematomas que tinha nas costelas e no pulso. Minhas costelas estavam marcadas contra a pele e as olheiras davam ao meu rosto uma compleição quase cadavérica. Fui tomada por uma onda de fúria misturada com tristeza, à medida que imaginava como Lorenzo chamaria meu nome quando entrasse pela porta da frente, ao voltar da viagem. Ele me chamaria pelo nome e iria até a cozinha. Ele procuraria por mim no quarto. Verificaria também a garagem, a varanda dos fundos e o porão. “Onde você está?”, perguntaria ele. “O que temos para o jantar?”
Com a tesoura, eu comecei a cortar meu próprio cabelo com selvageria. Dez centímetros de cabelo ruivo caíram no saco de lixo. Eu peguei outra mecha, usando os dedos para puxar os fios, dizendo a mim mesma para medir o comprimento, e cortei novamente. Senti um forte aperto no peito.
Ariela: Eu odeio você! — sibilei com a voz trêmula. — O tempo todo me agredindo e humilhando! 
— Cortei mais mechas do cabelo, meus olhos se enchendo com as lágrimas da fúria.  Me bateu porque eu tive que fazer compras— Mais cabelos caíram na pia. Tentei me conter para igualar as pontas.  Fez com que eu roubasse dinheiro de sua carteira e me chutou porque estava bêbado! — Estava tremendo agora. Minhas mãos não conseguiam se firmar no trabalho. Mechas de tamanhos diferentes se acumulavam a meus pés. — Fez com que eu tivesse que me esconder! Bateu em mim com tanta força que eu vomitei! — Cortei novamente com a tesoura. — Eu amava você! — disse entre soluços. — Você prometeu que nunca mais me bateria e eu acreditei em você! Eu quis acreditar em você! — Eu cortava os cabelos e chorava. 
Quando meu cabelo já estava com um comprimento uniforme, tirei a tintura que havia escondido atrás da pia. Castanho claro. Em seguida, entrei no box e molhei os cabelos. Virei o frasco e comecei a aplicar a tintura no couro cabeludo. Fiquei em pé em frente ao espelho e chorei incontrolavelmente enquanto a nova cor se fixava nos cabelos. Ao final do processo, entrei novamente no box e enxaguei os cabelos. Eu os lavei com xampu e condicionador, e postei-me novamente em frente ao espelho. 
Cuidadosamente, apliquei o delineador nas sobrancelhas, escurecendo-as. Apliquei também creme bronzeador em minha pele, escurecendo-a. Vesti-me com uma calça jeans e um suéter e olhei para mim mesma no espelho. Uma mulher estranha, loira e de cabelos curtos olhou de volta para mim.
Eu limpei o banheiro com bastante cuidado, certificando-me de que nenhum fio de cabelo ficasse no piso do box ou no chão do banheiro. Outras mechas foram parar no saco de lixo, com a embalagem da tintura para cabelos. Esfreguei a pia e o balcão do banheiro e amarrei a boca do saco de lixo. Finalmente, pinguei colírio nos olhos, tentando apagar a evidência de minhas lágrimas.
Eu tinha que correr agora. Guardei minhas coisas em uma bolsa de viagem. Três calças jeans, dois suéteres, camisas. Calcinhas e sutiãs. Meias. Escova e pasta de dentes. Uma escova para o cabelo. Delineador para minhas sobrancelhas. As poucas joias que possuía. Queijo, biscoitos, nozes e uvas-passas. Um garfo e uma faca. Eu fui para a varanda dos fundos e peguei o dinheiro que deixara escondido debaixo do vaso de flores. Peguei também o telefone celular que estava na cozinha. E, finalmente, a identificação que precisava para começar uma nova vida — documentos que havia roubado de pessoas que confiavam em mim. Senti ódio de mim mesma por haver roubado e sabia que aquilo era errado, mas não tive outra escolha. Rezei e pedi a Deus que me perdoasse, pois já era tarde demais para voltar atrás.
Eu havia ensaiado a situação em minha cabeça milhares de vezes e andei rapidamente. A maioria dos vizinhos já havia saído para o trabalho. Não queria que ninguém me visse saindo de casa, não queria que ninguém me reconhecesse.
Coloquei um chapéu e vesti minha jaqueta, com um cachecol e luvas. Depois, enfiei minha bolsa de viagem embaixo da blusa que vestia, apertando-a e enrolando-a até que assumisse um formato arredondado. Até que eu parecesse estar grávida. Vesti também meu sobretudo por cima das roupas. A peça era grande o bastante para cobrir a barriga falsa.
Olhei-me mais uma vez no espelho. Cabelo curto e loiro. Pele cor de cobre. Grávida. Eu coloquei um par de óculos escuros e, ao sair pela porta, liguei meu telefone celular e programei o telefone fixo da casa para transferir as chamadas. Sai de casa pelo portão lateral, andando por entre minha casa e a do vizinho, seguindo a cerca, e coloquei o saco de lixo na lixeira da casa ao lado. Sabia que o casal que morava ali havia saído para trabalhar e que não havia ninguém em casa. Com os vizinhos de trás a rotina era a mesma. Então atravessei o quintal de meus vizinhos e sai pela lateral, finalmente chegando à calçada da rua, que estava coberta por uma fina camada de gelo.
A neve havia voltado a cair. Sabia que, no dia seguinte minhas pegadas já teriam desaparecido.
Precisaria caminhar por seis quarteirões, mas sabia que conseguiria fazê-lo. Mantive a cabeça baixa enquanto andava, tentando ignorar o vento cortante, sentindo-me estonteada, livre e aterrorizada, tudo ao mesmo tempo. Sabia que, amanhã à noite, Lorenzo andaria pela casa, chamando meu nome, e não me encontraria porque eu não estaria mais lá. E, amanhã à noite mesmo, ele já começaria sua caçada.

Flocos de neve riscavam o ar enquanto eu esperava no cruzamento, em frente à porta de um restaurante. Ao longe, eu vi a van azul do Super Shuttle dobrar a esquina e meu coração bateu mais forte no peito. Bem naquele momento, ouvi o telefone celular tocar. Empalideci. Os carros passavam em alta velocidade à minha frente, com os pneus fazendo barulho enquanto esmagavam a neve acumulada na rua. Ao longe, a van mudou de faixa, se aproximando do lado da rua onde eu estava. Eu tinha que atender; não havia outra escolha além de atender o telefone. Mas a van estava se aproximando e havia muito ruído na rua. Se atendesse agora, Lorenzo saberia que eu estava fora de casa. Ele perceberia que eu o havia abandonado. O telefone tocou pela terceira vez. A van azul parou em um sinal vermelho. A um quarteirão de distância.
Eu me virei, entrando no restaurante. Os sons estavam abafados, mas ainda eram perceptíveis — uma sinfonia de pratos batendo uns contra os outros e pessoas conversando. Logo à frente estava o púlpito da recepcionista, onde um homem pedia que ela o levasse a uma mesa. Senti meu estômago embrulhar. Eu cobri o bocal do telefone com uma das mãos e olhei pela janela, rezando silenciosamente para que ele não conseguisse ouvir a comoção que havia à minha volta. Senti minhas pernas tremerem enquanto pressionava o botão e atendia à ligação.
Lorenzo: Por que demorou tanto para responder?
Ariela: Eu estava no chuveiro. O que houve?
Lorenzo: Ainda faltam dez minutos para me chamarem no tribunal. E você, como está?
Ariela: Estou bem — Ele hesitou.
Lorenzo: Sua voz está estranha. Tem alguma coisa errada com o telefone?
A um quarteirão de distância, o semáforo acendeu a luz verde. A van do Super Shuttle se aproximou da calçada, com a luz da seta acesa, indicando que iria estacionar. Atrás de mim, as pessoas do restaurante haviam ficado surpreendentemente silenciosas.
Ariela: Não sei. Mas estou ouvindo você muito bem. Provavelmente o sinal de celular é ruim no lugar onde você está. Como foi a viagem?
Lorenzo: Não foi ruim depois que saí da cidade. Mas ainda há gelo cobrindo a pista em alguns lugares.
Ariela: Isso não parece ser muito bom. Tenha cuidado.
Lorenzo: Estou bem.
Ariela: Eu sei. — A van estava estacionando ao lado da calçada e o motorista estava esticando o pescoço, procurando por mim. — Detesto ter que fazer isso, mas você não quer me ligar daqui a alguns minutos? Ainda estou com o cabelo cheio de condicionador e preciso enxaguá-lo.
Lorenzo: Tudo bem. Ligo de volta em alguns minutos — resmungou.
Ariela: Amo você.
Lorenzo: Eu também amo você. — Eu deixei que ele desligasse antes de pressionar o botão para encerrar a ligação no celular. Em seguida, sai do restaurante e corri para a van.
Ao chegar à rodoviária, comprei uma passagem para o Brasil, detestando a atitude do homem que me vendeu a passagem que insistia em puxar assunto para conversar. Em vez de esperar no terminal, eu atravessei a rua para tomar café da manhã. O dinheiro para a van e para a passagem de ônibus haviam levado mais da metade do que eu guardara durante o ano, mas eu sentia fome. Pedi panquecas, salsicha e leite. Alguém havia esquecido um jornal sobre a mesa e eu me forcei a lê-lo. Lorenzo ligou para mim enquanto eu comia. Quando ele mencionou outra vez que a minha voz estava estranha, eu disse que poderia ser por causa da nevasca.
Vinte minutos depois, embarquei no ônibus. Uma senhora idosa apontou para a barriga falsa enquanto eu passava pelo corredor.
Senhora: Quanto tempo até o parto?
Ariela: Mais um mês.
Senhora: É o primeiro?
Ariela: Sim — respondi, mas minha boca estava tão seca que era difícil manter a conversa. Eu continuei andando pelo corredor do ônibus e sentei-me em uma das últimas poltronas. Havia pessoas sentadas à minha frente e também atrás. Do outro lado havia um jovem casal. Adolescentes, um deitado por cima do outro, escutando música. Suas cabeças balançavam para cima e para baixo.
Olhei pela janela enquanto o ônibus saía da rodoviária, sentindo-me como se estivesse sonhando. Na autoestrada, Bariloche começou a ficar cada vez menor na distância, cinzenta e fria. Minhas costas doíam conforme o ônibus avançava, correndo por quilômetros e quilômetros. A neve continuou a cair e os pneus dos carros continuavam espalhando a neve suja conforme passavam pelo ônibus.
Eu desejei poder conversar com alguém. Queria contar a alguém que estava fugindo porque meu marido me batia e que não podia chamar a polícia porque meu marido era a polícia. Queria contar a alguém que não tinha muito dinheiro e que nunca mais poderia usar meu próprio nome. Se fizesse aquilo, ele me encontraria e me arrastaria para casa. Voltaria a me bater e provavelmente não pararia. Queria contar a alguém que estava aterrorizada porque não sabia onde dormir naquela noite ou o que faria para conseguir comer quando meu dinheiro acabasse.
Senti o ar frio contra a janela conforme o ônibus passava por outras cidades. O trânsito na estrada diminuiu, mas pouco tempo depois a estrada voltou a ficar cheia. Eu não sabia o que fazer. Meus planos terminavam no ônibus e não havia ninguém a quem eu pudesse ligar para pedir ajuda. Estava sozinha e não tinha nada além das coisas que trazia comigo.
Uma hora antes de chegar ao Brasil, o telefone celular tocou novamente. Eu cobri o bocal com a mão e conversei com Lorenzo. Antes de desligar, ele prometeu ligar novamente antes de ir para a cama.

Cheguei ao Brasil no final da tarde. Fazia frio, mas não estava nevando. Eu sabia que nesse país não nevava.  Os passageiros desembarcaram do ônibus e eu me deixei ficar para trás, esperando que todos saíssem. No banheiro, tirei a bolsa de debaixo das roupas, fui para a sala de espera e sentei-me em um dos bancos. Meu estômago estava roncando. Peguei um pedaço do queijo e o comi com alguns biscoitos. Sabia que teria que fazer aquela comida durar e guardei o restante de volta na mala, mesmo que ainda estivesse com fome. Finalmente, depois de comprar um mapa da cidade, sai da rodoviária.
O terminal rodoviário não ficava em uma parte ruim da cidade que havia parado. Avistei um centro de conversões. Aquilo me fez sentir segura, mas também significava que nunca teria condições de pagar por um quarto de hotel naquela região. O mapa indicava que estava próxima de um bairro aparentemente calmo e, sem um plano melhor, caminhei naquela direção.
Três horas mais tarde, finalmente encontrei um lugar para dormir. O lugar era sujo e cheirava a fumaça de cigarro, e meu quarto mal tinha espaço para a pequena cama que haviam enfiado ali dentro. Em vez de uma luminária havia apenas uma lâmpada incandescente pendurada no teto e todos os quartos compartilhavam o mesmo banheiro, no final do corredor. As paredes eram cinzentas e estavam manchadas pela umidade. Nos quartos vizinhos, dava para ouvir as pessoas conversando em um idioma que havia muito tempo que não ouvia
. Mesmo assim, o dinheiro que eu tinha não me permitia ir para outro lugar. A quantia era suficiente para passar três noites ali, ou quatro, se eu conseguisse sobreviver com a pouca comida que havia trazido de casa.
Eu me sentei na beirada da cama, tremendo, com medo do lugar, com medo do futuro e com minha mente em um turbilhão. Tinha que ir ao banheiro, mas não queria sair do quarto. Tentei dizer a mim mesma que seria uma aventura e que tudo ficaria bem. Por mais estranho que parecesse, comecei a me perguntar se sair de casa teria sido um erro. Tentei não pensar na minha cozinha, no meu quarto e em todas as coisas que havia deixado para trás. Sabia que podia comprar uma passagem de volta para Argentina e chegar em casa antes que Lorenzo percebesse que fugira. Mas meu cabelo agora estava curto e castanho e isso eu não teria como explicar.
Do lado de fora, o sol já havia desaparecido, mas as luzes da rua iluminavam o quarto através da janela suja. Eu ouvi o som de buzinas e olhei para a rua. Na rua, todas as fachadas tinham nomes escritos com caracteres portugueses e algumas das lojas ainda estavam abertas. Dava para ouvir algumas das conversas que vinham dos cantos mais escuros e havia sacos plásticos cheios de lixo empilhados nas calçadas. Estava em uma cidade que não conhecia, cercada por estranhos. Pensei que talvez não conseguisse me libertar, afinal. Que não era forte o bastante. Em três dias, eu não teria um lugar para dormir a menos que conseguisse encontrar um emprego. Se vendesse minhas joias talvez pudesse pagar por mais uma noite no hotel, mas e depois? O que faria?
Eu me sentia muito cansada e minhas costas ainda latejavam. Deitei-me e o sono veio quase imediatamente. Lorenzo telefonou mais tarde e o toque do telefone me despertou. Precisei de toda minha energia e concentração para falar com a voz firme, para evitar que ele descobrisse minha fuga. Mesmo assim, fiz parecer como se estivesse tão cansada quanto realmente estava, fazendo com que Lorenzo acreditasse que eu estava na nossa cama. Depois que ele desligou, adormeci em poucos minutos.
Pela manhã, ouvi pessoas andando pelo corredor, indo em direção ao banheiro. Duas mulheres brasileiras estavam em frente às pias. O revestimento da parede estava coberto por um bolor verde e havia papel higiênico molhado no chão. A porta da cabine não tinha uma tranca e eu tive que segurá-la com a mão.
De volta ao quarto, tomei um café da manhã composto por queijo e biscoitos. Eu pensei em tomar um banho, mas percebi que havia me esquecido de trazer xampu e sabonete, então não haveria como fazer aquilo. Troquei de roupa e escovei meus dentes e cabelo. Em seguida, guardei minhas roupas novamente na bolsa de viagem, pois não queria deixá-la no quarto, e passei a alça por sobre o ombro. Desci pelas escadas e vi que o mesmo funcionário que havia me entregado a chave do quarto continuava atrás do balcão da recepção. Imaginei que ele nunca saía de trás do balcão. Paguei por mais uma noite e pedi-lhe que deixasse o quarto reservado.
Do lado de fora, o céu estava azul e as ruas, secas. Eu percebi que a dor em minhas costas havia quase desaparecido. Fazia frio, mas não tanto frio como em Bariloche e, apesar de meus medos, eu percebi que estava sorrindo. Fiz questão de lembrar a mim mesma que havia conseguido. Lorenzo estava a centenas de quilômetros de distância e não sabia onde eu estava. Ele ligaria mais uma ou duas vezes. Depois, jogaria o telefone fora e nunca mais teria que voltar a conversar com ele.
Levantei a cabeça e respirei o ar gelado. Sentia que o dia era revigorante, cheio de possibilidades. Hoje, iria encontrar um emprego. Hoje, decidira, eu começaria a viver o resto de minha vida.

Eu havia fugido duas vezes antes e gostaria de ter aprendido com meus erros. A primeira vez aconteceu pouco antes de completar um ano de casamento, depois que Lorenzo me bateu enquanto eu me agachava em um canto do quarto. As contas da casa haviam chegado e Lorenzo ficou irritado porque eu ajustara o termostato para deixar a casa mais quente. Quando finalmente parou de agredir-me, ele pegou as chaves do carro e saiu de casa para comprar mais bebida. Sem pensar no que estava fazendo, eu peguei minha jaqueta e sai de casa, mancando pelas ruas. Horas depois, com o granizo caindo e sem qualquer lugar para ir, eu lhe telefonei e ele foi me buscar.
Na ocasião seguinte, eu havia chegado até uma cidade perto de Buenos Aires, antes que ele me encontrasse. Eu havia tirado dinheiro da carteira de Lorenzo e comprado uma passagem de ônibus, mas ele me encontrou menos de uma hora depois de eu chegar ao meu destino. Ele me algemou no banco de trás do carro antes de voltar para casa. No caminho, ele parou o carro ao lado de um prédio de escritórios abandonado e bateu em mim novamente. Mais tarde, naquela noite, a arma surgiu.
Depois daquele episódio, ele criou mais obstáculos para mim. Deixava seu dinheiro guardado em uma caixa com um cadeado e começou a rastrear meu paradeiro de forma obsessiva. Eu sabia que ele tomaria atitudes extremas para encontrar-me. Por mais que fosse louco, Lorenzo era persistente e metódico e seus instintos raramente falhavam. Ele descobriria que eu estava no sul do Brasil e iria encontrar-me. Eu estava em vantagem por enquanto, mas, sem dinheiro para recomeçar a vida em algum outro lugar, tudo o que podia fazer era olhar por cima dos ombros, mas apenas por um breve período. O tempo que passaria ali seria curto.
Encontrei um emprego como garçonete para servir coquetéis no meu terceiro dia. Inventei um nome e um número de seguro social. Os dados seriam verificados depois de algum tempo, mas eu já teria ido embora quando aquilo acontecesse. Encontrei outro quarto para alugar na parte mais distante da cidade. Assim, trabalhei durante duas semanas, acumulando o dinheiro das gorjetas enquanto procurava por outro emprego. Quando encontrei, deixei o emprego de garçonete sem nem me incomodar em pegar meu salário. Não havia razão para aquilo. Sem uma identidade válida, não conseguiria descontar o cheque. Trabalhei por mais três semanas em um pequeno restaurante e me mudei para um outro hotel, que eu alugava por semana. Embora estivesse em uma parte mais perigosa da cidade, o quarto era mais caro, mas tinha um banheiro privativo com chuveiro quente. Valia a pena, mesmo que fosse apenas para ter um pouco de privacidade e um lugar onde pudesse deixar minhas coisas. Eu havia juntado algumas centenas de reais em gorjetas, mais do que tinha quando sai de Bariloche, mas ainda não era o bastante para recomeçar minha vida. Novamente, eu sai do emprego sem pegar meu salário, sem nem mesmo me incomodar em pedir demissão. Encontrei outro emprego alguns dias depois, novamente trabalhando em um restaurante. No novo emprego, disse ao gerente que meu nome era Érica.
As constantes mudanças de emprego e de hotel fizeram com que eu continuasse vigilante e foi lá, apenas quatro dias depois de começar, que eu virei uma esquina a caminho do trabalho e vi um carro que, de algum modo, me pareceu estranho. Eu parei.
Mesmo depois de muito tempo, ainda não sabia como pude perceber alguma coisa só porque o carro estava limpo o bastante para refletir os raios do sol da manhã. Enquanto olhava para o carro, eu vi que havia movimento no banco do motorista. O motor não estava ligado e me pareceu estranho perceber que havia alguém dentro de um veículo sem o dispositivo de aquecimento em uma manhã fria. Eu sabia que as únicas pessoas que faziam aquilo eram aquelas que estavam esperando por alguém.
Ou que estavam à procura de alguém.

Lorenzo.
Eu sabia que era ele. Sabia com uma certeza que me surpreendia. Dei meia-volta e virei a esquina de novo, voltando pelo mesmo caminho por onde viera, rezando para que ele não me tivesse visto pelo espelho retrovisor. Assim que o carro estava fora do meu campo de visão, eu comecei a correr de volta para o hotel, com o coração aos pulos. Não corria tão rápido assim há anos, mas todas as caminhadas que vinha fazendo nas últimas semanas haviam fortalecido minhas pernas e eu andei rapidamente. Um quarteirão. Dois. Três. Olhava constantemente por cima do ombro, mas Lorenzo não me seguia.
Aquilo não importava. Ele sabia que eu estava ali. Ele sabia onde eu trabalhava. Ele saberia de tudo se eu não aparecesse para trabalhar. Dentro de poucas horas, ele descobriria o lugar onde eu estava morando.
De volta ao quarto, joguei minhas coisas na bolsa de viagem e sai pela porta em poucos minutos. Comecei a andar rumo à rodoviária. Mesmo assim, levaria um tempo enorme para chegar até lá. Uma hora de caminhada, talvez mais. E eu não tinha tempo. Aquele seria o primeiro lugar onde ele iria quando percebesse que eu não estava no restaurante. Dando meia-volta, voltei para o hotel e pedi ao recepcionista para chamar um táxi. O veículo chegou dez minutos depois. Os dez minutos mais longos de minha vida.
Na rodoviária, examinei freneticamente os horários dos ônibus e escolhi um que iria para Santa Catarina e que sairia dali a meia hora. Eu me escondi no banheiro feminino até a hora de embarcar. Quando subi no ônibus, me deixei afundar em minha poltrona. O ônibus não demorou a chegar em Santa Catarina. Novamente, examinei os horários e comprei uma passagem que me levaria até o Paraná.
No início da noite, eu desembarquei do ônibus. Dormi na rodoviária e na manhã seguinte caminhei até um posto de gasolina à beira da estrada onde conheci um homem que faria uma entrega em São Paulo, capital. Alguns dias mais tarde, depois de vender minhas joias, eu cheguei até Santos, encontrei um apartamento simples. Depois de pagar o primeiro mês de aluguel, não tinha mais dinheiro para comprar comida.

Flashback Off

NeymarJr: Está tudo bem, meu amor. Estou aqui com você. — Ele estava com os braços ao meu redor, acariciando meus cabelos. — Vamos passar por tudo isso juntos.
Ariela: Você não precisa passar por isso, Júnior. — disse entre soluços. — Você tem tantas outras opções. Você não precisa disso.
NeymarJr: Para de falar merda, Ariela. Eu quero isso. Eu quero cuidar de você e te proteger. E é isso que vou fazer. Você tem que parar de querer me fazer mudar de ideia, você e nenhum outro alguém irá conseguir.

Nove – Flashback.

Nós voltamos para a cozinha, alguns minutos depois. Deixei minha taça de vinho sobre o balcão e me ocupei com os afazeres do jantar, colocando os aperitivos e os pimentões recheados no forno. Ainda me recuperando do choque que sentira quando Junior revelou detalhes tão exatos sobre meu passado, eu fiquei feliz por ter algo com que me ocupar. Era difícil aceitar que ele ainda quisesse desfrutar de minha companhia naquela noite. E, mais importante, que eu quisesse passar a noite com ele. No fundo do meu coração, não tinha certeza de que merecia ser feliz e também não acreditava que fosse digna de ter alguém que parecia tão... normal. 
Aquele era o segredo sujo associado ao meu passado. Não o fato de ter sofrido com a violência de alguma forma, eu achava que merecia o que me acontecera, simplesmente por ter deixado que tudo aquilo acontecesse. Mesmo agora, eu ainda me envergonhava. Havia momentos em que me sentia incrivelmente feia, como se as cicatrizes do passado ficassem visíveis para todos. Mas, nesse momento e nesse lugar, meu passado importava menos do que antigamente, porque, de algum modo, eu suspeitava que Junior entendia a vergonha que eu sentia. E aceitava aquele sentimento também.
Eu tirei da geladeira a calda de framboesas que havia feito durante a tarde e comecei a despejá-la com uma colher em uma pequena frigideira que já estava quente no fogão. Não demorou muito e, depois de deixá-la de lado, tirei os pedaços de queijo brie enrolados com bacon do forno, cobri-os com a calda e trouxe-os para a mesa. Lembrando-me do vinho que ainda estava sobre o balcão, eu peguei a garrafa e fui me sentar à mesa com Junior.
Ariela: Isso é só para começar. Os pimentões ainda vão demorar um pouco. – ele se inclinou em direção à bandeja.
NeymarJr: O cheiro é maravilhoso. – ele se serviu de um dos pedaços de queijo e o levou à boca. — Tá uma delícia.
Ariela: É bom, não é? — disse sorrindo.
NeymarJr: Maravilhoso.
Ariela: Não precisa exagerar, tá? – rimos.
NeymarJr: Onde você aprendeu a cozinhar assim?
Ariela: Eu tinha um amigo que era cozinheiro. Ele me disse que esse aperitivo consegue encantar qualquer pessoa. – Junior cortou outro pedaço com seu garfo.
NeymarJr: Fico feliz por você ter decidido ficar em Santos. Acho que consigo me imaginar comendo este queijo com calda de framboesas regularmente durante as férias, mesmo que tenha que trocar as minhas refeições totalmente saudáveis por este prato. – ri.
Ariela: A receita não é complicada.
NeymarJr: Você nunca me viu cozinhar. Sou muito bom para fazer pratos que as crianças gostam. A propósito, sei fazer um risoto divino – dei risada e peguei meu copo de vinho e tomei mais um gole.
Ariela: Acho que o queijo vai combinar mais com o vinho tinto. Você se importa se eu abrir a outra garrafa?
NeymarJr: Claro que não. – ele se levantou e foi até o balcão da cozinha. Abriu o zinfandel enquanto fui até o armário e tirei mais duas taças. Junior encheu as duas e entregou uma delas a mim. Nós dois estávamos perto o bastante para que nossos corpos quase se tocassem. Ele limpou a garganta.– Eu queria te dizer uma coisa, mas não quero que você me entenda mal. – eu hesitei.
Ariela: Por que é que tenho a impressão de que não vou gostar do que você vai dizer?
NeymarJr: Eu só queria te dizer o quanto estava ansioso para que essa noite chegasse. Sabe, passei a semana inteira pensando nisso. – levantei uma sobrancelha.
Ariela: Por que você achou que eu entenderia mal?
NeymarJr: Não sei. Talvez por você ser mulher? Porque isso faz com que eu pareça desesperado, e porque nenhuma mulher gosta de homens desesperados? – pela primeira vez naquela noite, eu ri de forma tranquila, sem nervosismo.
Ariela: Eu não acho que você seja um desesperado. Tenho a impressão de que, às vezes, você fica sobrecarregado por conta da família e do futebol. Mas você não é do tipo que fica me ligando todos os dias.
NeymarJr: Eu só não faço isso porque você não tem celular. Mas, mesmo assim, eu queria que você soubesse que tudo isso significa muito para mim. Não tenho muita experiência com esse tipo de coisa.
Ariela: Jantares?
NeymarJr: Não. Encontros românticos. Já faz um bom tempo. “Bem-vindo ao clube”, pensei comigo mesma. – Normalmente não é necessário isso. As mulheres simplesmente se oferecem.
Ariela: Está querendo dizer que só quer sexo? – perguntei no impulso.
NeymarJr: Não. Claro que não. – falou rápido. Aquilo fez com que eu me sentisse bem, de qualquer maneira.
Ariela: Vamos comer — convidei-o a voltar à mesa.
NeymarJr: É melhor comer enquanto ainda estão quentes. – me observou – Por que cortou o cabelo?
Ariela: Não gostou? – me assustei.
NeymarJr: Gostei, claro. – sorri – Mas não faz mais isso...
Ariela: Por quê?
NeymarJr: Eu gostava do tamanho que tava.
Ariela: Não faz sentido. – tremi, sentindo uma pequena onda de pânico me dominando. Ele sorriu me tranquilizando.
Quando o aperitivo estava terminado, eu me levantei da mesa e fui até o forno, dando uma rápida olhada nos pimentões antes de lavar a frigideira que havia usado antes. Eu juntei os ingredientes para o molho do prato principal e comecei a prepará-lo. Quando os milanesas ficaram prontas, o molho também já estava finalizado.
Coloquei um pimentão em cada prato e acrescentei as milanesas. Depois de deixar a cozinha à meia-luz, eu acendi a vela que havia deixado no centro da mesa. O aroma de manteiga e alho e a luz que tremeluzia contra a parede fizeram com que a cozinha parecesse quase nova e com que o ar se enchesse de expectativas. Jantamos e conversamos. Ele elogiou a refeição mais de uma vez, dizendo que nunca havia provado nada melhor. Conforme a vela queimava e a garrafa de vinho se esvaziava, revelei alguns fragmentos e detalhes de meu passado, como a vida que tive nas cidades da Argentina enquanto crescia. Embora não tivesse revelado todos os detalhes sobre meus pais à Alina, eu contei tudo a Junior, sem quaisquer reservas: as constantes mudanças, o alcoolismo de meus pais e o fato de que tive que sobreviver sozinha desde os 17 anos. Junior ficou em silêncio durante todo o relato, escutando sem julgar-me. Mesmo assim, eu não tinha certeza sobre o que ele achava de meu passado. Quando eu finalmente parei de falar, comecei a imaginar se não teria dito coisas demais sobre mim mesma. Mas foi nesse momento que ele colocou sua mão sobre a minha. Embora não conseguisse olhar nos olhos dele, nos demos as mãos sobre a mesa. Eu não me sentia disposta a quebrar a magia daquele toque, era como se fôssemos as duas únicas pessoas que restavam no mundo.
Ariela: Acho que é melhor eu começar a limpar a cozinha — disse após algum tempo, finalmente quebrando o encanto.
NeymarJr: Eu quero que você saiba que esta noite foi maravilhosa para mim – começou ele.
Ariela: Junior... eu... – ele balançou a cabeça.
NeymarJr: Você não precisa dizer nada que... – não o deixei concluir a frase.
Ariela: Mas eu quero dizer algo, está bem? – eu estava ao lado da mesa, com os olhos provavelmente brilhando por conta de uma emoção desconhecida – Eu também tive uma noite maravilhosa. E sei para onde isso vai nos levar e não quero que você fique magoado – disse exalando o ar e me preparando para as palavras que teria que dizer a seguir – Não posso fazer promessas. Não posso lhe dizer onde estarei amanhã, ou mesmo daqui a um ano. Quando fugi pela primeira vez, pensei que conseguiria deixar tudo para trás e começar minha vida do zero, entende? Eu viveria minha vida e simplesmente fingiria que nada havia me acontecido. Mas como posso fazer isso? Você acha que me conhece, mas não tenho certeza nem mesmo se eu me conheço. E por mais que você saiba algumas coisas sobre mim, há muitas outras que você não sabe.
NeymarJr: Quer dizer que você não quer mais me ver?
Ariela: Não — disse balançando a cabeça com firmeza — Estou dizendo tudo isso porque eu quero vê-lo outras vezes, sim. E isso me assusta, porque, no fundo do meu coração, sei que você merece alguém melhor e pode encontrar isso facilmente. Você merece alguém em quem possa confiar. Alguém com quem seu filho possa contar. Como eu disse, há certas coisas sobre mim que você não sabe.
NeymarJr: Essas coisas não me interessam – insistiu.
Ariela: Como você pode dizer uma coisa dessas? – No silêncio que se seguiu àquela pergunta. Vi pela janela, a lua havia aparecido no céu e agora iluminava.
NeymarJr: Porque eu conheço a mim mesmo — ele levantou da cadeira.
Ariela: Junior... isso não pode...
NeymarJr: Ariela – sussurrou ele e, por um momento, não nos movemos. Ele finalmente pousou sua mão no meu quadril e me levou para perto de si. Eu soltei o ar, como se estivesse me livrando de um fardo que trazia há muito tempo sobre os ombros. E, quando eu consegui olhar nos olhos dele, foi como se repentinamente se tornasse fácil para mim imaginar que meus medos fossem insignificantes. Que Junior me amaria independentemente do que eu dissesse. Que ele era o tipo de homem que já estava apaixonado e que estaria para sempre.
E foi naquele momento que eu percebi que também estava apaixonada. Assim, eu me permiti tocá-lo e apoiar meu rosto no peito dele. Eu senti os dois corpos se tocarem e senti quando Junior acariciou meu cabelo com uma das mãos. O toque era suave e gentil, diferente de tudo o que eu havia sentido anteriormente, e eu observei, encantada, enquanto ele fechava os olhos. Inclinou a cabeça e nossos rostos se aproximaram.
Quando nossos lábios finalmente se encontraram, eu senti o gosto do vinho na língua dele. Me entreguei a Junior, permitindo que ele beijasse minha face e meu pescoço, arqueando as costas para trás e me deliciando com a sensação. Eu sentia a umidade dos lábios dele conforme eles me tocavam a pele, e coloquei os braços ao redor do pescoço dele. “Essa era a verdadeira sensação de estar apaixonada por alguém”, pensei, e de ter esse mesmo amor retribuído. Comecei a sentir as lágrimas se formando em meus olhos. Eu pisquei tentando não derramá-las, mas era impossível fazer aquilo. Eu estava apaixonada e o queria. Mais do que isso, queria que Junior amasse a verdadeira Ariela, com todos os seus defeitos e segredos. Eu queria que ele soubesse toda a verdade. Nos beijamos por muito tempo na cozinha, envolvidos em abraços apertados. As mãos de Junior deslizavam pelas minhas costas e os meus cabelos. Eu me arrepiei ao sentir a barba por fazer no rosto de Junior. Quando ele deslizou seus dedos pela pele do meu braço, eu senti uma torrente de calor líquido queimar meu corpo por dentro.
Ariela: Eu quero muito estar com você, mas não posso – sussurrei finalmente, esperando que aquilo não o enervasse.
NeymarJr: Está tudo bem — sussurrou – Eu duvido que esta noite possa ficar mais maravilhosa do que foi até aqui.
Ariela: Mas você está decepcionado. – ele afastou uma mecha do cabelo que caía sobre o meu rosto.
NeymarJr: Não acho que seja possível você me causar qualquer tipo de decepção. – eu engoli em seco, tentando afastar meus temores.
Ariela: Tem algo que você precisa saber sobre mim — sussurrei.
NeymarJr: Seja lá o que for, tenho certeza de que posso entender.
Ariela: Não posso passar a noite com você. É o mesmo motivo pelo qual nunca poderemos nos casar — disse em voz baixa – Eu ainda sou casada.
NeymarJr: Eu sei — sussurrou ele.
Ariela: E você não se importa?
NeymarJr: Não é uma situação perfeita. Mas confia em mim, também não sou uma pessoa perfeita. Assim, talvez seja melhor deixarmos as coisas acontecerem, um dia após o outro. E quando você estiver pronta, quando realmente se sentir à vontade, estarei esperando. – ele tocou o meu rosto com um dedo – Eu estou apaixonado por você, Ariela. Talvez você não esteja preparada para dizer essas palavras agora. Talvez nunca esteja. Mas isso não muda o que sinto por você.
Ariela: Junior...
NeymarJr: Você não precisa dizer nada.
Ariela: Posso explicar? — finalmente me afastei. Ele não fez questão de esconder sua curiosidade – Eu quero lhe contar mais. Quero lhe contar minha história.


Flashback On
Uma brisa gelada, típica do início de janeiro, fez com que os flocos de neve congelassem, e eu tive que baixar a cabeça enquanto caminhava em direção ao salão de cabeleireiros. Meus longos cabelos esvoaçavam com o vento, fazendo com que eu sentisse as agulhadas do gelo conforme os flocos se chocavam contra meu rosto.
Eu estava usando sapatos de salto alto, não botas, e meus pés já estavam congelando. Atrás de mim, Lorenzo estava no carro, sentado ao volante, observando-me. Embora eu não tivesse me virado para olhá-lo, eu ouvia o barulho do motor e sabia que os lábios dele formavam uma fina linha horizontal, com os músculos tensionados.
A multidão que enchia aquela região da cidade durante o Natal já não ocupava mais as ruas. De um dos lados do salão havia a loja especializada em produtos eletrônicos a La Dispositivos Electrónicos, e do outro, um pet shop. As duas lojas estavam vazias. Quando eu ia entrar no salão, o vento fez com que a porta se abrisse violentamente, e eu tive que me esforçar para fechá-la. O ar gelado me seguiu para dentro do recinto e os ombros de minha jaqueta estavam cobertos por uma fina camada de neve. Tirei minhas luvas e a jaqueta, virando-me ao fazer aquilo. Eu acenei para Lorenzo em despedida e sorri. Ele gostava quando eu lhe lançava um sorriso. Eu tinha um horário marcado às 2 horas com uma mulher chamada Raquel. A maioria das cadeiras já estavam ocupada e eu não sabia para onde devia ir. Era a primeira vez que eu vinha até este salão e sentia um certo desconforto com aquilo. Nenhuma das cabeleireiras parecia ter mais de 30 anos e a maioria delas tinha penteados arrojados, com mechas ou tinturas azuis e vermelhas. Logo depois, eu fui abordada por uma garota com cerca de 25 anos, bronzeada e com alguns piercings, além de uma tatuagem no pescoço.
Xxx: Você está agendada para as 2 horas? Corte e hidratação? – fiz que sim com a cabeça – Meu nome é Raquel. Venha comigo. – Raquel deu uma olhada por cima do ombro – Está bem frio lá fora, não é? Eu quase morri no caminho entre meu carro e a entrada do salão. Eles nos obrigam a deixar o carro na parte mais distante do estacionamento. Detesto isso, mas não há nada que eu possa fazer.
Ariela: Está bem frio — concordei. Raquel me levou para uma cadeira perto do canto do salão. Era uma cadeira forrada com vinil roxo e o piso do salão era de azulejos pretos. “Um lugar para pessoas mais jovens”, pensei. Mulheres solteiras que queriam se destacar. Não para mulheres casadas com cabelos ruivos. Eu estava inquieta, sentindo​-me agitada à medida que Raquel cobria minhas roupas com uma bata. Eu agitava os dedos dos pés, tentando aquecê​-los.
Raquel: Você é nova na cidade?
Ariela: Eu moro em San Carlos de Bariloche.
Raquel: Fica um pouco longe. Alguém lhe indicou o salão? – eu havia passado em frente ao salão há duas semanas, quando Lorenzo me levara às compras, mas não cheguei a dizer aquilo. Em vez disso, eu simplesmente neguei com um aceno de cabeça – Bem, acho que foi sorte eu ter atendido ao telefone, então – disse com um sorriso – Que tipo de corte você quer? – eu detestava olhar para mim mesma no espelho, mas não tinha escolha. Eu tinha que conseguir fazer aquilo e da maneira certa. Era minha única chance. Havia uma fotografia colada no espelho à sua frente, mostrando Raquel e um rapaz que eu presumi ser o namorado dela. Ele tinha mais piercings do que ela e também tinha o cabelo cortado em estilo moicano. Por baixo da bata, apertei as mãos.
Ariela: Eu não quero que fique curto – assentiu, olhando para o meu reflexo no espelho.
Raquel: Vai ser moleza, então. Vou fazer a hidratação primeiro. Me dê alguns minutos para preparar minhas coisas. Eu volto já. – assenti. Ao meu lado, vi uma mulher recostada em um lavatório e outra cabeleireira ao seu lado. Eu ouvi a água correr e o murmúrio geral das conversas que vinha das outras cadeiras do salão. Uma música suave vinha pelos alto​-falantes. Raquel voltou com cremes, tesouras e pentes. Perto da cadeira ela organizou tudo – Há quanto tempo você mora em Bariloche?
Ariela: Três anos.
Raquel: E onde você morava antes?
Ariela:  Eu morava em Buenos Aires antes de me mudar para lá.
Raquel: Aquele homem que te trouxe até aqui é seu marido?
Ariela: Sim.
Raquel: Ele tem um belo carro. Vi quando você acenou para ele. Qual é o modelo? Um Mustang? – assenti mais uma vez, mas não respondi. Raquel trabalhou por algum tempo em silêncio.
Raquel: Há quanto tempo vocês são casados? — perguntou, conforme massageava meus cabelos.
Ariela: Três anos.
Raquel: Foi por isso que você se mudou para Bariloche, não é?
Ariela: Sim. – Raquel continuou com sua conversa.
Raquel: E o que você faz? Com o que trabalha? – olhei para frente, tentando não enxergar a mim mesma no espelho. Desejando ser outra pessoa. Eu poderia ficar ali por uma hora e meia antes que Lorenzo voltasse para buscar-me e rezava para que ele não chegasse mais cedo.
Ariela: Eu não trabalho.
Raquel: Acho que ficaria louca se não tivesse um emprego. Não que seja fácil manter um, é claro. E o que você fazia antes de se casar?
Ariela: Eu era garçonete e trabalhava servindo coquetéis.
Raquel: Em um bar? – fiz que sim com a cabeça – Foi lá que você conheceu seu marido?
Ariela: Sim.
Raquel: E o que ele está fazendo agora? Enquanto você está aqui embelezando o cabelo? “Provavelmente está em algum bar”, pensei.
Ariela: Não sei.
Raquel: E por que você não veio até aqui dirigindo? Como eu disse, San Carlos de Bariloche fica um pouco longe daqui.
Ariela: Eu não tenho habilitação. Meu marido me leva sempre que eu preciso ir a algum lugar.
Raquel: Eu não sei o que faria sem meu carro. Não é nada de especial, mas vou aonde preciso com ele. Detestaria ter que depender de outra pessoa para ir de um lugar a outro. – eu podia sentir o perfume do creme no ar.
Ariela: Nunca aprendi a dirigir. – Raquel deu de ombros.
Raquel: Não é difícil. Treine um pouco, faça o teste e você logo estará guiando pelas ruas.– Eu olhei para Raquel no espelho. Ela parecia saber o que estava fazendo, mas ainda era jovem e estava começando sua vida, e enquanto a olhava, eu desejava que ela fosse mais velha e mais experiente. E aquilo me pareceu estranho, porque eu provavelmente era somente alguns dois anos mais velha do que Raquel. Mas eu sentia-me velha – Você tem filhos?
Ariela: Não. – Talvez a garota tivesse percebido que dissera algo errado, pois trabalhou em silêncio durante os minutos seguintes.
Raquel: Já volto para ver como você está em alguns minutos, certo? – ela se afastou, indo em direção a outra cabeleireira. Elas começaram a conversar, mas o murmúrio generalizado no salão fazia com que fosse impossível compreender o que elas estavam dizendo. Eu olhei para o relógio na parede. Lorenzo voltaria em menos de uma hora.O tempo estava passando rápido. Rápido demais. Ao voltar, Raquel verificou meu cabelo. – Mais um pouco – comentou ela e voltou a conversar com sua colega, gesticulando com as mãos. Animada. Jovem e despreocupada. Feliz.
Mais alguns minutos se passaram. Uma dúzia deles. Eu tentei não olhar fixamente para o relógio. Finalmente, a hora chegou e Raquel me levou até o lavatório. Eu me sentei e me recostei contra a pia, sentindo a toalha ao redor da pele do pescoço. Raquel ligou a torneira e eu senti um jato de água fria bater em meu rosto. A jovem cabeleireira massageou meu cabelo com o xampu e o enxaguou; posteriormente, aplicou o condicionador e voltou a enxaguar.
Raquel: Vamos dar um belo corte agora. – Voltando para a cadeira, pensei que meu cabelo estava bom, mas era difícil saber com certeza porque estava molhado. Tinha que estar exatamente como eu queria, ou Lorenzo perceberia. Raquel penteou meu cabelo, desembaraçando os fios. Ainda faltavam quarenta minutos.– Quanto você quer que eu corte?
Ariela: Cuidado para não cortar demais. Só tire as pontas. Meu marido gosta dele longo.
Raquel: Você vai querer algum penteado diferente? Tenho uma revista de penteados se você quiser tentar algo novo.
Ariela: Eu gostaria do mesmo penteado que eu estava usando quando cheguei.
Raquel: Sem problemas. – observei enquanto Raquel penteava meu cabelo, fazendo minhas mechas lhe correrem por entre os dedos para depois os cortar com a tesoura. Primeiro atrás, depois nas laterais. E, finalmente, na parte de cima da cabeça. Raquel pegou um chiclete em algum lugar e começou a mascá-lo, com seu queixo se movendo para cima e para baixo enquanto trabalhava.– Está bom assim?
Ariela: Sim, acho que já é o bastante. – Raquel pegou o secador de cabelos e uma escova cilíndrica. Ela deslizou a escova pelos meus cabelos. Eu ouvia o ruído do secador alto em meus ouvidos.
Raquel: De quanto em quanto tempo você trata o cabelo? — tentou puxar assunto.
Ariela: Uma vez por mês. Mas às vezes eu só peço um corte.
Raquel: Seu cabelo é muito bonito.
Ariela: Obrigada — Raquel continuou a trabalhar. Pedi que ela lhe fizesse alguns cachos e ela pegou a escova modeladora. Levou alguns minutos até que o aparelho esquentasse. Ainda havia cerca de vinte minutos.
Raquel cacheou e escovou meus cabelos até que estivesse satisfeita e me estudou no espelho.
Raquel: Está bom assim? – examinei a cor e o penteado.
Ariela: Está perfeito.
Raquel: Dê uma olhada na parte de trás – Ela girou minha cadeira e me entregou um espelho. Olhei para o reflexo duplo e acenei afirmativamente com a cabeça – Acho que está feito, então.
Ariela: Quanto lhe devo? – ela disse o valor e eu tirei o dinheiro de minha bolsa, incluindo a gorjeta. — Pode me dar um recibo?
Raquel: É claro. Venha comigo até o caixa. – A garota preparou o recibo e o entregou a mim. Lorenzo iria verificá-lo e pediria o troco quando eu voltasse para o carro, e eu pedi a Raquel que incluísse a gorjeta no recibo.
Eu olhei para o relógio. Doze minutos. Lorenzo ainda não havia retornado e o meu coração estava batendo rapidamente enquanto vestia minha jaqueta e calçava as luvas.
Eu saí do salão enquanto Raquel ainda conversava comigo. Na loja ao lado, a La Dispositivos Electrónicos, eu pedi que o balconista me mostrasse um telefone celular descartável e um cartão que me desse vinte horas de serviço. Eu senti uma forte vertigem ao dizer aquelas palavras, sabendo que, depois daquilo, não seria possível voltar atrás. O balconista me mostrou um que estava debaixo do balcão e começou a me dar os detalhes do aparelho à medida que explicava seu
funcionamento. Eu tinha mais dinheiro em minha bolsa, escondido em um pacote de absorventes, pois sabia que Lorenzo nunca iria procurar nada ali. Peguei o dinheiro e coloquei as notas amarrotadas sobre o balcão. O relógio continuava a contar os segundos e novamente olhei para o estacionamento. Eu estava começando a sentir um pouco de tontura e minha boca estava seca. O rapaz da loja demorou uma eternidade para conseguir ligar para o meu celular novo. Embora fosse pagar o aparelho em dinheiro vivo, o balconista pediu que eu lhe desse meu nome, endereço e código postal. Não havia qualquer motivo para aquilo. Era ridículo. Eu queria pagar e sair logo dali. Contei até dez e o rapaz ainda estava digitando meus dados. Na rua, o semáforo acendeu a luz vermelha. Havia carros esperando. Imaginei que Lorenzo poderia estar ali, pronto para passar em frente à loja. Eu não sabia se ele conseguiria me ver saindo da loja de produtos eletrônicos. Sentia dificuldade até para respirar.
Eu tentei abrir a embalagem plástica, mas foi impossível. Grande demais para caber na bolsa que trazia, grande demais para caber no bolso da jaqueta. Pedi ao balconista que me emprestasse uma tesoura e ele gastou um minuto precioso procurando por uma. Eu queria gritar, mandar que ele se apressasse, porque Lorenzo chegaria a qualquer momento. Em vez disso, eu me virei para olhar pela janela.
Quando consegui tirar o celular da embalagem, o enfiei no bolso da jaqueta, com o cartão pré-pago. O rapaz perguntou se eu queria uma sacola, mas eu já havia saído pela porta sem responder. O telefone parecia pesar como um bloco de chumbo dentro do bolso de minha jaqueta, e a neve e o gelo na calçada faziam com que fosse difícil manter o equilíbrio. Abri a porta do salão de beleza e entrei. Eu tirei jaqueta e as luvas e esperei ao lado do caixa. Trinta segundos depois, vi o carro de Lorenzo se aproximar pela rua, até chegar perto do salão. Removi rapidamente a neve que havia se acumulado em minha jaqueta, enquanto Raquel vinha em minha direção. Eu senti uma onda de pânico ao imaginar que Lorenzo poderia ter percebido. Concentrei-me, tentando manter o controle, agir naturalmente.
Raquel: Você esqueceu alguma coisa? – eu soltei a respiração.
Ariela: Eu ia esperar do lado de fora, mas está muito frio. E percebi também que não peguei seu cartão. – o rosto de Raquel pareceu se iluminar.
Raquel: Oh, é claro. Espere um pouco. – foi até sua cadeira e tirou um cartão de uma das gavetas do balcão. Eu sabia que Lorenzo me observava do carro, mas fingi não notá
​-lo. Raquel voltou e entregou seu cartão para mim. – Geralmente não trabalho aos domingos e às segundas​-feiras – assenti.
Ariela: Ligo quando precisar dos seus serviços.– por trás de mim, ouvi a porta do salão se abrir e Lorenzo estava esperando por mim sob o batente. Ele geralmente não entrava nestes lugares e eu senti meu coração acelerar. Eu voltei a vestir a jaqueta, tentando controlar o tremor nas mãos. Até que, finalmente, me virei e sorri.
***
A neve caía mais forte quando Lorenzo estacionou o carro em frente à nossa casa. Havia sacolas de compras no banco de trás e Lorenzo pegou três delas antes de caminhar até a porta. Ele não havia dito nada no percurso do salão até o supermercado e falou pouco comigo durante as compras. Em vez disso, ele andou ao meu lado conforme eu examinava as prateleiras em busca de promoções e tentava esquecer o telefone que trazia no bolso.
Não tínhamos muito dinheiro e Lorenzo ficaria irritado se eu gastasse demais. As prestações da hipoteca da casa custavam quase metade do seu salário e as despesas do cartão de crédito lhe tiravam mais uma boa porção. Na maioria das vezes precisávamos comer em casa, mas Lorenzo gostava de refeições como as que eram servidas em restaurantes, com um prato principal e duas guarnições, ocasionalmente acompanhados por uma salada. Ele se recusava a comer sobras de refeições anteriores e era difícil adequar a renda às suas exigências. Eu tinha que planejar os cardápios diários com cuidado, além de recortar cupons promocionais que apareciam no jornal. Quando Lorenzo pagou pelas compras, eu lhe entreguei o troco do salão de cabeleireiros e também o recibo. Ele contou o dinheiro para se certificar de que tudo estava em ordem.
Em casa, eu esfreguei os braços para me manter aquecida. A casa era velha e o ar frio entrava pelas frestas das janelas e pelo vão embaixo da porta da frente. O piso do banheiro era tão frio que fazia meus pés doerem, mas Lorenzo reclamava do custo do óleo usado para aquecer a casa e nunca deixava que eu ajustasse o termostato para uma temperatura mais agradável. Quando ele estava trabalhando, eu usava uma blusa de moletom e chinelos; entretanto, quando Lorenzo estava em casa, ele queria que eu me vestisse de forma sensual.
Lorenzo deixou as sacolas de compras sobre a mesa da cozinha. Eu deixei minhas sacolas ao lado das que ele havia colocado ali e Lorenzo foi até a geladeira. Abrindo o congelador, ele tirou uma garrafa de vodka e alguns cubos de gelo. Colocou o gelo em um copo e despejou a vodka. Ele só parou de derramar a bebida quando seu copo estava quase cheio.
Deixando​-me sozinha, ele foi até a sala de estar e eu ouvi os sons da televisão, ligada no canal ESPN6. O comentarista esportivo estava falando sobre o time dos All Boys, as finais do campeonato de futebol e as chances que a equipe tinha de conquistar mais um título da La Liga. No ano passado, Lorenzo fora até o estádio assistir a um jogo dos Lanús. Ele era fã do time desde criança.
Eu tirei minha jaqueta e enfiei a mão no bolso. Eu imaginava que teria alguns minutos e esperava que fossem suficientes. Depois de espiar a sala para ver o que Lorenzo estava fazendo, eu me apressei a voltar para a cozinha. No armário debaixo da pia havia uma caixa de esponjas para lavar louça. Eu escondi o telefone no fundo da caixa e o cobri com as esponjas. Fechei cuidadosamente a porta do armário antes de pegar minha jaqueta, esperando que meu rosto não estivesse pálido, rezando para que ele não tivesse me visto. Respirando fundo para me fortalecer, coloquei o casaco sobre o braço e atravessei a sala de estar para colocá-lo no armário que havia ali. A sala pareceu se esticar conforme eu andava, como um quarto visto pelos reflexos de uma casa de espelhos em um parque de diversões, mas eu tentei ignorar aquela sensação. Eu sabia que Lorenzo era capaz de olhar através de mim, de ler minha mente e perceber o que eu havia feito, mas ele não desviou sua atenção da televisão. Eu só senti a respiração voltar ao normal quando retornei à cozinha.
Eu comecei a guardar as compras, ainda sentindo-me um pouco zonza, mas sabendo que tinha que agir normalmente. Lorenzo gostava que sua casa estivesse limpa e arrumada, especialmente a cozinha e os banheiros. Guardei o queijo e os ovos em seus respectivos compartimentos na geladeira. Tirei os legumes velhos da gaveta e a limpei com um pano antes de colocar os novos. Depois, peguei algumas vargens e uma dúzia de batatas de casca vermelha de uma cesta no chão da dispensa. Deixei um pepino no balcão, com um pé de alface americana e um tomate para fazer uma salada. Para o prato principal do jantar daquela noite, prepararia filés marinados.
Eu havia deixado os filés marinando no molho no dia anterior: vinho tinto, suco de laranja, suco de grapefruit, sal e pimenta. A acidez dos sucos servia para amaciar a carne e lhe dava mais sabor. Estava em uma caçarola na parte debaixo da geladeira.
Eu guardei o restante das compras, trazendo os produtos mais antigos para a frente e dobrei as sacolas plásticas, colocando-as sob a pia. Retirei uma faca de uma gaveta. A tábua de cortar carnes estava debaixo da torradeira e eu a coloquei ao lado do fogão. Cortei as batatas ao meio, apenas o bastante para o jantar de nós dois. A seguir, untei uma assadeira com óleo, liguei o forno e temperei as batatas com salsa, sal, pimenta e alho. Aqueles ingredientes iriam ao forno antes dos filés e eu teria que requentá-los mais tarde. A carne tinha que ser grelhada. Lorenzo gostava que os ingredientes da sua salada fossem cortados em pedaços bem pequenos, com pedaços de queijo gorgonzola, croutons e molho italiano. Eu cortei o tomate ao meio e um quarto do pepino antes de envolver o resto em filme plástico e guardá-los novamente na geladeira. Ao abrir a porta, eu percebi que Lorenzo estava na cozinha por trás de mim, apoiado contra o batente da porta que levava à sala de jantar. Ele tomou um longo gole, terminando sua vodka e continuando a observar-me, quase onipresente. Ele não sabia que eu havia saído do salão, eu fiz questão de me lembrar. Não sabia que eu havia comprado um telefone celular. Ele teria dito alguma coisa. Teria feito alguma coisa.
Lorenzo: Vamos ter filé para o jantar? – fechei a porta da geladeira e continuei a me mover pela cozinha, tentando parecer ocupada e tentando ficar à frente de meus medos.
Ariela: Sim. Acabei de ligar o forno, então ainda vai demorar alguns minutos. Preciso colocar as batatas para assar antes.– ele me olhava fixamente.
Lorenzo: Seu cabelo está bonito.
Ariela: Obrigada. A cabeleireira trabalhou bem. – voltei para a tábua de corte. Comecei a cortar o tomate, tirando uma longa fatia.
Lorenzo: Nada de pedaços grandes – meneou a cabeça na minha direção.
Ariela: Eu sei – eu sorri quando ele foi até o congelador novamente. Ouvi o tinir dos cubos de gelo em seu copo.
Lorenzo: Sobre o que você conversou enquanto estava no salão de beleza?
Ariela: Nada de mais. As coisas de sempre. Você sabe como as cabeleireiras são. Elas sempre tentam puxar assunto. – Ele balançou o copo. Eu podia ouvir os cubos de gelo batendo contra o vidro.
Lorenzo: Você falou a meu respeito?
Ariela: Não – eu sabia que ele não gostaria daquilo e ele fez que sim com a cabeça. Ele tirou a garrafa de vodka do congelador outra vez e a deixou ao lado do seu copo, sobre a mesa antes de vir atrás de mim. Em pé, ele observou por cima do meu ombro enquanto eu picava os tomates. Pedaços pequenos, nada que fosse maior do que uma ervilha. Eu sentia a respiração de Lorenzo em minha nuca e tentei não gemer quando ele colocou as mãos nos meus quadris. Sabendo o que deveria fazer, eu pousei a faca sobre o balcão e me virei na direção dele, colocando meus braços ao redor do pescoço dele. Eu o beijei, colocando minha língua na boca dele, sabendo que era isso o que ele queria, e não percebi o tapa até que senti o ardor no meu rosto. Queimava. Quente e vermelho. Estalado. Como ferroadas de abelha.
Lorenzo: Você me fez desperdiçar a tarde inteira! – gritou ele, agarrando-me os braços com força, apertando-os. Sua boca estava contorcida e os olhos estavam vermelhos, injetados. Eu sentia o cheiro da bebida em seu hálito e algumas gotas de saliva me atingiram o rosto. – Era meu único dia de folga e você escolheu logo hoje para ir cortar o cabelo bem no meio da cidade! E depois quis ir ao supermercado! – Eu tentei me desvencilhar, tentei me afastar dele, até que ele finalmente me largou. Ele balançou a cabeça. O músculo do seu queixo pulsava. – Você, por acaso, chegou a pensar que a única coisa que eu queria fazer hoje seria relaxar um pouco? Aproveitar para descansar no meu único dia de folga?
Ariela: Me desculpe – disse com a mão no rosto. Eu não disse que havia lhe perguntado duas vezes antes, naquela mesma semana, se haveria algum problema com aqueles planos. Ou que fora ele próprio que me obrigara a ir para outro salão de beleza porque não queria que eu fizesse amizade com alguém. Não queria que ninguém soubesse da vida que tínhamos.
Lorenzo: Me desculpe — disse ele no mesmo tom da minha voz. Ele olhou para mim antes de balançar a cabeça novamente. – Por Deus, Todo-Poderoso. Será que é tão difícil pensar em alguma outra pessoa que não seja em você mesma? – ele estendeu o braço, tentando agarrar-me, e eu me virei, tentando correr. Ele estava preparado para aquela reação e não havia para onde ir. O golpe foi rápido e com força, o punho se movendo como um pistão, atacando a região lombar das minhas costas. Eu arfei, sentindo minha visão escurecer, sentindo-me como se tivesse sido esfaqueada. Desabando no chão, sentia meus rins arderem, a dor se irradiando pelas pernas e pela coluna. O mundo estava girando e quando eu tentei me levantar, meu movimento piorou a sensação.– Você é egoísta demais, o tempo todo! – disse ele curvando-se por cima de mim. Eu não disse nada. Não conseguia dizer nada. Não conseguia nem respirar. Eu mordi meu lábio para não gritar e imaginei se iria urinar sangue no dia seguinte. A dor era como uma lâmina, dilacerando meus nervos, mas eu não iria chorar. Aquilo só serviria para deixar Lorenzo ainda mais furioso. Ele continuou em pé ao meu lado e depois suspirou, com uma expressão de puro desprezo. Foi até a mesa, pegou seu copo vazio e a garrafa de vodka antes de sair da cozinha.
Levei quase um minuto para reunir a força necessária para me levantar. Quando comecei a cortar os legumes novamente, minhas mãos estavam tremendo. A cozinha estava gelada e a dor em minhas costas era muito intensa, latejando com cada batida do meu coração.
Na semana anterior, ele havia me golpeado com tanta força no estômago que eu tinha passado o resto da noite vomitando. Eu caíra no chão e Lorenzo me agarrou pelo pulso para fazer com que me levantasse novamente. Os hematomas em meu pulso tinham o formato dos dedos dele. Vestígios do inferno.
Lágrimas me escorriam pelo rosto e eu tinha dificuldade para me manter em pé, apoiando meu peso ora em uma perna, ora em outra, para tentar afastar a dor enquanto terminava de picar o tomate. Eu fiz o mesmo com o pepino. Pedaços pequenos. O alface, também, cortado e picado. Do jeito que ele queria. Enxuguei as lágrimas com as costas da mão e fui lentamente até a geladeira. De lá, tirei uma embalagem de queijo gorgonzola e depois peguei os croutons em outro armário. Na sala de estar, ele havia aumentado o volume da televisão outra vez.
O forno estava na temperatura certa. Coloquei a assadeira dentro do forno e ajustei o cronômetro. Quando o calor me atingiu o rosto, eu percebi que minha pele ainda ardia, mas duvidava que o tapa houvesse deixado qualquer marca. Ele sabia exatamente a força que precisava usar. Eu me perguntava onde ele havia aprendido aquilo, se era algo que todos os homens sabiam, ou mesmo se havia aulas secretas, com instrutores especializados em ensinar essas coisas. Ou, ainda, se aquilo era apenas uma característica de Lorenzo.
A dor em minhas costas havia finalmente começado a diminuir de intensidade. Eu já conseguia respirar normalmente. O vento soprava pelas frestas da janela e o céu havia assumido uma cor cinzenta e escura. A neve batia suavemente no vidro. Olhei discretamente em direção à sala, vi Lorenzo sentado no sofá e me apoiei no balcão.
Tirei um dos sapatos de salto e esfreguei os dedos dos pés, tentando fazer o sangue fluir, tentando aquecê-los. Fiz o mesmo com o outro pé antes de voltar a calçar os sapatos.
Eu lavei e cortei as vargens e coloquei um pouco de azeite de oliva na frigideira. Começaria a refogar as vargens quando os filés estivessem na grelha. E tentei não pensar no telefone que estava sob a pia.
Estava tirando a assadeira do forno quando Lorenzo voltou para a cozinha. Ele estava com o copo na mão e já havia bebido metade do conteúdo. Seus olhos estavam desfocados. Havia bebido quatro ou cinco doses. Eu não sabia ao certo. Coloquei a assadeira sobre o fogão.
Ariela: Só mais um pouco — falei num tom neutro, fingindo que nada havia acontecido. Eu havia aprendido que, se demonstrasse irritação ou mágoa, aquilo serviria apenas para enfurecê-lo. – Tenho que terminar de preparar os filés e o jantar logo vai ficar pronto.
Lorenzo: Olhe, me desculpe – ele cambaleava um pouco. Eu sorri.
Ariela: Está tudo bem. Sei que as últimas semanas foram difíceis. Você tem trabalhado demais.
Lorenzo: Seu jeans é novo? — as palavras saíram arrastadas pela boca dele.
Ariela: Não. Faz algum tempo que não uso esta calça.
Lorenzo: É bonita.
Ariela: Obrigada – ele deu um passo em minha direção.
Lorenzo: Você é linda. Você sabe que eu a amo, não sabe?
Ariela: Sei, sim.
Lorenzo: Eu não gosto de bater em você. Mas, às vezes, você não pensa nas coisas que faz. – Eu assenti, desviando o olhar, tentando pensar em algo para fazer, precisando me ocupar com algo, até me lembrar que precisava colocar os pratos e os talheres na mesa. Aproveitei e fui até o armário que ficava ao lado da pia. Lorenzo se aproximou por trás de mim enquanto eu buscava os pratos e fez com que eu me virasse em sua direção, puxando-me para perto de si. Eu inalei antes de dar um suspiro de felicidade, porque sabia que Lorenzo queria que eu respondesse aos seus carinhos com aqueles sons.
Lorenzo: Você tem que dizer que me ama também – sussurrou ele. Ele beijou-me o rosto e eu coloquei meus braços ao redor dele. Eu sentia-o pressionar contra meu corpo, sabia o que ele queria.
Ariela: Eu amo você – a mão de Lorenzo deslizou-se até meu seio. Eu esperei que ele o apertasse, mas aquilo não aconteceu. Em vez disso, ele me acariciou suavemente. Apesar de tudo o que havia acontecido, meu mamilo começou a ficar intumescido e eu detestava quando aquilo acontecia. Mas não conseguia evitar. O hálito de Lorenzo estava quente. E com cheiro de bebida.
Lorenzo: Meu Deus, você é linda. Você sempre foi linda, desde a primeira vez que eu a vi – disse ele, pressionando seu corpo contra o meu, e eu conseguia sentir sua excitação. – Vamos deixar os filés para depois. O jantar pode esperar um pouco.
Ariela: Achei que você estivesse com fome — tentei fazer com que aquilo parecesse uma leve provocação.
Lorenzo: Estou com fome de outra coisa agora — sussurrou. Ele desabotoou a blusa que eu usava e a abriu, antes de levar as mãos para o botão do jeans.
Ariela: Aqui não — afastei o rosto do dele, mas deixando que ele continuasse a beijar-me. — Vamos para o quarto.
Lorenzo: Que tal fazermos na mesa? Ou no balcão?
Ariela: Por favor, meu bem — murmurei, com a cabeça arqueada para trás enquanto ele me beijava no pescoço. — Não é nada romântico.
Lorenzo: Mas é gostoso.
Ariela: E se alguém nos vir pela janela?
Lorenzo: Você não sabe se divertir.
Ariela: Por favor, vamos — disse novamente. — Não quer fazer isso por mim? Você sabe que me excita muito mais fazer na cama. — Ele me beijou mais uma vez, com as mãos indo até meu sutiã. Ele abriu o botão que prendia a peça na parte da frente. Lorenzo não gostava de sutiãs com o fecho na parte de trás. Eu senti o ar frio da cozinha em meus seios; vi o desejo no rosto de Lorenzo enquanto ele os olhava. Ele lambeu os lábios antes de levar-me até o quarto.
Ele foi tomado por uma energia animalesca logo que chegamos lá, puxando o meu jeans até os meus quadris e depois até os tornozelos. Ele me apertou os seios com força e eu mordi o lábio para não gritar antes que estivéssemos na cama. Eu gemi e arfei, gritando o nome de Lorenzo, sabendo que era isso o que ele queria, porque não queria que ele ficasse irritado, não queria ser estapeada, socada ou chutada, porque não queria que Lorenzo descobrisse o telefone celular. Eu ainda sentia a dor lancinante em meus rins e transformei meus gritos em gemidos, dizendo as coisas que ele queria que eu dissesse, excitando-o até que seu corpo começasse a se mover em espasmos. Quando tudo terminou, eu me levantei da cama, vesti-me e o beijei antes de voltar à cozinha para terminar de preparar o jantar.
Lorenzo voltou para a sala de estar e bebeu mais vodka antes de vir até a mesa. Ele me falou sobre seu trabalho e depois foi até a sala para ver um pouco mais de televisão enquanto eu limpava a cozinha. Depois, ele quis que eu me sentasse ao seu lado para assistir à televisão, até que finalmente chegou a hora de ir dormir.
No quarto, depois de poucos minutos, ele já estava roncando, sem perceber as minhas lágrimas silenciosas, sem perceber o ódio que eu sentia por ele, ou o ódio que sentia de mim mesma. Sem saber sobre o dinheiro que eu vinha guardando há quase um ano, ou sobre a tintura de cabelo que eu havia colocado discretamente no carrinho de supermercado há um mês e que havia escondido atrás do armário, sem fazer a menor ideia sobre o telefone celular escondido no armário sob a pia da cozinha. Sem imaginar que, dentro de alguns dias, se tudo acontecesse como eu esperava, ele nunca mais voltaria a me ver ou me agredir.

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